Hoje trago-vos um dos meus tópicos preferidos das aulas da academia do WrestlingPortugal. Este é um tema que é desconfortável para muita gente que está agora a começar e, ao mesmo tempo, é um bom complemento para os meus 2 recentes artigos, “Tudo sobre Truques, Golpes e Manobras” e “Como ser um bom Worker”. Uma espécie de capítulo III, digamos assim.
Improvisar. “Fazer de repente, sem premeditação ou sem os elementos precisos”, diz o dicionário. Nos treinos sempre procurei preparar os meus alunos para tudo, alertando-os que podem surgir situações que não esperam nem controlam e terão, na mesma, de dar a cara.
Lesões, combates pouco (ou mal) combinados, falta de tempo, alterações climatéricas em eventos ao ar livre, público apático, acidentes… tudo pode acontecer num evento de Wrestling e quanto maior a preparação, melhores as probabilidades de contornar estas surpresas. Por mais planeado que o Wrestling possa ser, vai haver sempre algo a correr mal um dia- portanto o melhor é preparar esse momento o melhor possível, certo?
Vamos então começar a aula de hoje. Aqui, partilho também um dos meus dias mais importantes enquanto fã e dou uma pequena lição de história para se entender porque é que devemos voltar a um tempo em que somos mais wrestlers e menos actores.
Vamos lá apertar as botas…
Até que ponto é predeterminado?
É uma das perguntas que mais recebo e provavelmente qualquer fã de Wrestling já teve de lidar com esta situação. “Wrestling? Mas isso não é tudo combinado?” onde provavelmente a tua resposta será algo do género “Uma parte. Nem tudo.”
A pergunta de sempre…
É sempre divertido falar com estas pessoas porque 90% das vezes o que acontece é ouvirem-te e dizerem “OK, é a tua opinião”, visto que raramente aceitam informação diferente daquela que preconceberam. Ou seja, acaba por muitas vezes ser uma perda de tempo. Mas as restantes 10% vão provavelmente questionar-te “Ai sim? Então mas até que ponto é combinado?” e aí se calhar a resposta já não é tão clara.
Um conselho? Responde simplesmente com “Depende.”
Porque é realmente a resposta certa. Há momentos de 30 segundos que podem ser mais coreografados do que combates de 10 minutos. Há sequências que podem demorar uma hora a ser entendidas e finais de combate decididos em 5 segundos. Promos? A mesma coisa. Alguns podem precisar de falar em frente a um espelho toda a tarde para uma promo de 30 segundos e outros só precisam de ler o guião uma vez e depois logo se vê.
Como se preenche os momentos que não estão combinados com o colega? A resposta é óbvia… com improviso. A questão é que hoje em dia, parece que cada vez temos de ter maior memória para participar num combate de Wrestling. Porquê? Bem, vamos para uma breve lição de História…
O Wrestling há 20 anos atrás
Muita coisa era igual: também havia DDTs e Bodyslams. Também havia programas televisivos e até PPVs. Os lutadores também iam para o ringue já a saber quem venceria o confronto. Então o que mudou? O estilo.
Seja no Wrestling independente, seja na WWE, o ritmo dos combates mudou drasticamente. Falando aqui estritamente da empresa de Stanford, evoluimos de Wrestling para Sports Entertainment, em que o Wrestling é apenas o veículo para entreter as pessoas. A WWE tornou-se numa empresa de entretenimento, deixando de ser vista como uma entidade que faz apenas Wrestling.
Que impacto teve isso no Wrestling? Ora vejamos…
Num par de décadas muito mudou
#1: Mais tempo com um microfone e menos tempo no ringue
Para um lutador se expressar, passou a depender menos de golpes (que também são palavras) e mais do tempo de antena que lhe davam ao microfone. Se contares o número de minutos de Wrestling que um Raw tem e comparares com o tempo que foi atribuido a promos e outros packages para promover/desenvolver as personagens, poderás constatar que o Wrestling tem agora um papel claramente secundário.
O dom da oratória ganhou tanta importância que um Wrestler que seja bom a falar tem iguais ou até melhores chances de participar num evento.
#2: O estilo de Wrestling passou a ser outro
O factor #1 teve impacto directo neste ponto. Raros são os combates hoje em dia de 20 minutos onde os primeiros 10 são de “adaptação”. Chain-Wrestling? Nem vê-lo.
Os fãs de hoje em dia são muito mais impacientes, querendo que os combates partam rapidamente para a acção. Isto significa que se um lutador tiver um problema com o outro, um fã não espera que haja 10 lock-ups, headlocks e wristlocks durante 10 minutos em que claramente a tensão cresce; um fã espera ground and pound, sequências rápidas vindas das cordas e todos aqueles golpes característicos do lutador em questão.
#3: Cada minuto conta
Sempre foi assim, mas parece que Vince McMahon começou a dar cada vez mais valor a isso. Cada programa é planeado ao minuto e todos os investimentos de Vince (as personagens, os eventos, os produtos, a WWE app, a WWE Network etc) devem ser devidamente protegidos e promovidos.
Qual a consequência disso? Os pontos em que vamos para intervalo são críticos. Os pontos em que regressamos de intervalo são determinantes também. A acção tem de permanecer furiosa e a ausência de imagem (durante o intervalo) não pode prejudicar ninguém. Os ângulos de câmera são pensados com antecedência e o posicionamento e timing é fulcral.
#4: Os Wrestlers passaram a ser actores
De lutadores que iam para o combate, ouviam o público e combinavam discretamente pequenos spots para contar uma história com as suas manobras, entrámos numa era em que se vai para o ringue com uma considerável dose de preparação prévia, aguardando ainda por eventuais instruções do árbitro e respeitando à justa os tempos do segmento.
Hoje em dia, no Wrestling “de alto nível” é considerado normal teres de preparar sequências de 30–60 segundos, cronometrá-las, pedir que o árbitro te informe dos tempos para saber quando as deves realizar e claro, ter em consideração os ângulos de câmera para ficar “bonito” para quem está a ver a partir de casa. Os lutadores passaram a ser pequenos fantoches, que determinam juntamente com o agente o combate no balneário, vão para o ringue e fazem o que ficou estipulado, rezando para que tudo corra bem.
A consequência
Com toda esta evolução, parece inevitável: já não dá para improvisar. Ficam os house shows para isso. Agora escolhemos 4 ou 5 golpes que queremos estabelecer, pensamos num finisher e fazemos o mesmo combate todas as noites, onde só muda o adversário. Vamos ouvindo os árbitros e os agentes, dizemos que sim e na noite a seguir repetimos. Passados uns anos, se formos bons soldados o tio Vince dá-nos um miminho: um título qualquer e vamos subindo a escada, sem causar grandes ondas. Mas será que tem de ser mesmo assim?
E se algo corre mal?
Então e se alguém se lesiona? Então e se o X cai num combate Ultimate X? Então e se o Jeff não está no sítio onde devia e o Matt fica sentado à espera dele aos gritos?
Simples: 2 coisas acontecem.
1) Ficas sem saber o que fazer;
2) O público percebe… e desliga-se do que está a acontecer.
É o que mais me irrita num combate de Wrestling. Ver alguém parar e ficar a olhar para o adversário porque “não era o spot” ou ver meia dúzia de lutadores a olhar para o balneário com uma cara de “e agora?” porque algo não era suposto acontecer… e aconteceu.
Os fãs de Wrestling sabem que o que estão a ver não é real, tal como quando vão ao cinema. Mas quando vemos um filme, queremos desligar-nos do mundo durante 2 horas… e quando vão a um show de Wrestling, os fãs esperam o mesmo. A única “pequena” diferença é que só tens um take.
Há uma coisa que podes fazer. Uma coisa que te vai garantir que o público continua contigo, sem saber que o teu colega se esqueceu do leapfrog: improvisas. Ou então passas como um palhaço, mesmo quando a culpa não é tua (ver exemplo em baixo).
Lembra-te: só tu, o teu colega e eventualmente mais um par de pessoas sabem o que tens combinado. Se o teu colega se esquece de inverter o irish whip, tens 2 hipóteses: ou ficas com ar de aflição/birra porque não era isto que estava planeado, ou improvisas e fazes com que esse pareça o spot desejado desde o início. Qual é que achas que o público vai preferir?
O público só tem a ganhar
É uma tendência crescente em vários mercados. À medida que caminhamos para um mundo obcecado com a perfeição, em que vemos a foto perfeita mas não temos acesso às outras 100 que foram tiradas, ou assistimos a um filme genial de 2 horas sem ter acesso às centenas de cenas cortadas, acabamos por esquecer uma questão bem importante da vida: ninguém é perfeito.
O público é cada vez menos parte de um espectáculo. Um exemplo? Dantes, o papel de um DJ era chegar a uma festa, sentir a energia daquela discoteca e tocar as músicas que achava apropriadas para aquela plateia, naquele momento. Era virtualmente impossível ter 2 noites iguais. De repente, passou a acertar as batidas em casa, a fazer mashups no computador porque ficavam melhores que ao vivo e, de repente, por ter de sincronizar tudo com os efeitos visuais e as luzes, optou por simplesmente gravar os seus sets antes de chegar sequer à arena. Já dizia o produtor deadmau5, “We all hit play”. A consequência? O público passou a ver DJs como a actuação de só mais uma banda e não há qualquer adaptação face à sua audiência daquela noite.
O mesmo aconteceu com o Wrestling- os wrestlers deixaram de interagir tanto com o público, de adaptar o combate ao adversário e de explorar algo que teve particular reacção naquela noite. Limitam-se a seguir o que fica combinado… e o público passa assim a ter um papel bem mais passivo.
Às vezes é boa ideia alterar o que está planeado. Às vezes é melhor sentir a energia daquele público, daquela noite e fazer pequenos ou grandes ajustes, consoante o que a multidão quer. Pode não ficar tão bonito, mas garanto-te que o público vai sentir-se muito mais integrado- e a reacção será assim maior.
Se ainda não estás convencido, pensa no último PPV da WWE, no passado domingo e tira as tuas próprias conclusões.
Como treino esses momentos?
É verdade que não sabes o que vai acontecer, mas já dizia Winston Churchill:
“Aquele que falha a planear está a planear falhar.”
Não sejas um “one-trick pony”. Não sejas um “one-hit wonder”. Lembra-te do efeito Hardy Boyz. Não procures a fórmula para fazer a mesma rotina todos os dias e ter uma carreira maravilhosa de 20 anos sem grande esforço, porque essa fórmula não existe e serás ultrapassado rapidamente.
Em vez disso, pensa no público. Pensa no que nunca viram antes. Olha para o teu balneário- pensa como podes ser diferente da tua competição. Abraça cada combate como se fosse único: pensa na arena onde estás, no lutador que vais enfrentar, na história que tens com ele e certifica-te que não repetes o mesmo do dia anterior ou da semana passada. Assiste aos outros combates desse dia: todos trabalharam braço? Se calhar então é melhor dedicares-te à perna.
Na academia, treina todos os cenários: pensa o que farias se um dia não pudesses dar murros. Se o teu adversário não pudesse dar mais do que 3 quedas. Se o combate de repente tivesse de acabar em 30 segundos porque começou a chover. Se a corda de cima se partiu e só tens as outras duas.
Aprende a conhecer-te em todas as circunstâncias e sai da zona de conforto! Se já tens algo que funciona, parabéns, mas não te acomodes e pensa em novas formas de desenvolver a tua personagem para que tenhas sempre algo fresco para introduzir quando a altura chega. Quanto mais recursos tiveres, menos surpresas!
O dia em que Christian me mostrou como se faz
Aqueles que conseguem misturar o improviso com o que ficou previamente estabelecido são geralmente aqueles que têm um lugar de maior destaque numa companhia. Esse improviso vem com a experiência de muitos anos no ringue e de muitos imprevistos, mas também surge com a vontade de querer ser melhor e de dar algo novo a cada público.
Este exemplo que vou relatar aconteceu em solo português, em Janeiro de 2007, e abriu-me os olhos meses antes de ir para o Canadá para a Storm Wrestling Academy. Nesse mês, Porto e Lisboa foram brindados com aquele que foi para mim o melhor Wrestling no nosso país, onde lutadores como AJ Styles, Samoa Joe, Kurt Angle, Abyss, Team 3D, Rhino, Pac ou Christopher Daniels marcaram presença. Entre eles, estava também um dos meus lutadores preferidos, Christian.
Tive a possibilidade de assistir aos 2 eventos e houve algo que, na altura, me fez bastante confusão. Depois de assistir ao 1º evento no Campo Pequeno, desloquei-me até ao norte para a 2ª data e 90% desse evento foi um enorme déjà-vu. Não me refiro apenas aos combates terem sido praticamente os mesmos: os golpes, as sequências e a ordem foi exactamente igual! Houve pequenas alterações, mas nada de maior. Pac (conhecido agora no NXT como Adrien Neville) chegou a dizer-me que só colocou mais um salto na 2ª noite por ter reparado que algumas pessoas tinham estado na noite anterior.
A verdade é que a maior parte dos lutadores agiu como se nada fosse: numa cidade diferente, apenas a 300 km da outra, todos decidiram colocar exactamente o mesmo espectáculo… com a excepção de uma pessoa.
Para mim, a grande estrela destes 2 eventos
O meu respeito por este senhor passou a ser outro a partir desse dia. O canadiano, que ao lado de Kurt Angle era provavelmente o cabeça de cartaz, preocupou-se em fazer 2 combates totalmente diferentes com o seu adversário Abyss, contando histórias distintas e interagindo com o público de forma única. Foi uma lufada de ar fresco em 2 noites onde o Wrestling foi de elevadíssim qualidade, mas onde o 2º pareceu uma repetição do que tinha acontecido em Lisboa. Costumo até brincar e dizer que vi a TNA 1 vez em Portugal e o Christian 2 vezes, porque foi realmente o que pareceu.
A lição que retirei deste dia? Num balneário cheio de qualidade, um senhor que não tinha nada a provar deu o litro e preocupou-se em trazer algo único para a audiência, mostrando ser um general do ringue e, simplesmente, um class act. Christian recebia a energia do momento e contava a sua história através do improviso e da experiência, ao invés de se limitar a repetir aquilo que funcionou (ou não) na noite anterior.
Se fez diferença? Para 85% do público não. Mas aqueles 15% que foram às 2 datas se calhar vão-se lembrar que aquele se esforçou mais que os outros. Se houvesse um 3º espectáculo, quantos pagariam bilhete?
Conclusão
Preparar um combate faz parte da profissão, mas preparar imprevistos, sentir o público e improvisar também. Acima de tudo, certifica-te que quem te vê uma vez não vê tudo aquilo que sabes fazer- se não, que razão lhe dás para voltar?
Para a semana vamos trabalhar mais o aspecto da criatividade dentro do Wrestling. Até lá, fico como sempre à espera dos vossos comentários, mensagens e tweets!
24 Comentários
Excelente artigo e ótimas dicas… isto que você falou do Christian está faltando muito principalmente nas “grandes federações”.
Parabéns pela coluna!
Sem dúvida, parece estar em vias de extinção infelizmente. Obrigado por leres! 🙂
Excelente artigo!
Acaba por ser fantástico poder perceber um pouco do que se passa em alguns momentos que nós fãs muitas vezes não sabemos. Aquele “inside” que todos nós (falo por mim) queremos saber, sendo a procurar entrevistas, documentários e tudo mais.
Parabéns e boa sorte para os próximos!
Thanks! 🙂
Bammer esses seus artigos são uma verdadeira enciclopédia
Obrigado, ainda bem que os achas úteis! 🙂
EXCELENTE artigo 😀
Thanks!
eu tenho acompanhado os teus artigos e gostei muito mas este sem duvida foi o melhor pois eu acompanho a wwe a cerca de 7 e agora esta pior que nunca as rivalidades repetence e as historias sao retitivas e deslocadas do que o publico quer pelo menus eu e meus amigos.
querete dar os meus parabens pelo otimo trabalho e espero que continues
*Repetem-se, *repetitivas, *pelo menos, *quero-te
Obrigado por leres 🙂
O Wrestling é reciclado portanto é normal que as storylines se repitam, especialmente com tantas horas semanais na televisão e com rivalidades que agora duram muito menos tempo do que há 20 anos atrás. De qualquer modo, não é desculpa para a malta ficar preguiçosa e confortável no ringue, que é uma das mensagens deste artigo!
Bom artigo Bammer, com sorte ainda vou para a academia da WP. 😀 treinar claro
Força, serás bem vindo! 🙂
Muito bom. Eu aprendo demais a cada artigo seu.
Mas eu não entendi o que houve no primeiro video, em que o wrestler ficar na corda e outro na mesa…o que aconteceu ali?
Se não me engano o Jeff Hardy tinha que aparecer e fazer cair o lutador que ía saltar(que acabou caindo sozinho).O lutador que estava a dar murros no que estava na mesa gritou para o Jeff aparecer porque provavelmente ele se tinha esquecido do spot.
O Jeff tinha de agitar a corda para impedir o Moonsault, mas levou anos a chegar ao apron e acabou por ter de o fazer no lado oposto do ringue, estragando completamente o spot.
Obrigado, agora ficou claro. Lendo seus artigos, passei a ter uma visão totalmente diferente do wrestling como esporte e arte.
Óptimo, fico contente! 🙂
Excelente artigo, Bruno! Aprendo muito com suas palavras!
Óptimo, espero que sim! Obrigado por leres 🙂
Belo artigo Bruno,agora uma duvida q eu tenho é em relação a comunicação dentro do ringue ,vocês modificam o nome de algum golpe para ficar mais facil de falar ao outro wrestler ,exemplo a luta está com 10 minutos varios spots e alguem se esquece do fazer(e o movimento seria um backdrop suplex from the top rope)é usado o termo mais longo ou é encurtado??Desculpe o tamanho da pergunta mas não consegui sintetizar..
Geralmente os golpes mais “complexos” são discutidos no balneário e depois é só uma questão de um lembrar o outro (caso seja necessário) na altura em que é preciso prepará-lo. Se estivesse no meio do ringue com um adversário e o próximo golpe fosse esse, poderia dizer algo do género “vou lá para cima, vem ter comigo” ou simplesmente dizer o nome do golpe desde que parecesse óbvio para o colega e depois irmos calmamente para a posição certa.
Ahhh oks ,obrigado por esclarecer isto,vlws e abraços!
Artigo bem interessante, parabens! É óbvio que wwe é tudo combinado, por isso eu gosto mais de ir ao circo e ver os palhaços.