Boas a todos nesta grande casa que é o Wrestling PT!
No nosso dia-a-dia enquanto fãs de wrestling, deparamo-nos constantemente com uma expressão muito conhecida entre nós, adeptos da modalidade, a de “main-eventer”. Numa pequena primeira aproximação, ela servirá para adjetivar cada lutador ou lutadora que faça parte dos combates principais dos eventos da sua promotora respetiva, bem como serão os nomes que os fãs mais têm em mente quando pensam na promotora em questão.
Mas esta é uma noção muito ampla de “main-eventer”, que dá aso a considerar-se um número muito grande de lutadores que podem caber nesta noção. Se bem que este adjetivo ou estatuto que só determinados lutadores alcançaram é uma noção que poderá ser entendida diferentemente de forma subjetiva por cada fã de wrestling, ou relativizada pela heterogeneidade de características dos lutadores em questão que foram modificando a noção ao longo do anos, o meu objetivo para este artigo é recuperar o conceito mais objetivo que costumava corresponder a esta expressão.
Procurarei dissecar as várias características e diferentes standards que certos lutadores que possa considerar como “main-eventers”, ao mesmo tempo que, também do meu lado pessoal, procurarei atribuir a este conceito, aquilo que penso dever constituir-se este estatuto no wrestling, estatuto esse que poucos lutadores ao longo da história conseguiram conquistar e estatuto pelo qual a esmagadoríssima maioria dos wrestlers de todo o mundo ao longo da história sempre procurou conquistar.
De facto, não é qualquer lutador que, por mais vantagens ou pelo mais esforçado bom trabalho que desenvolva na sua atividade poderá ser um main-eventer, e isto por duas razões: o número de qualidades necessárias que um lutador tem que obter para ser um main-eventer é demasiado lato; bem como o próprio conceito de main-eventer, que pressupõe algo especial e diferente dos restantes lutadores, tem inerente uma noção de especialidade. Procurarei agora desenvolver melhor estes dois pontos.
No que diz respeito ao primeiro ponto, penso que não fará confusão a nenhum dos meus caros leitores se eu dizer que um main-eventer dito “perfeito” ou “completo”, deverá aglomerar no seu trabalho e nas suas características enquanto lutador, todo o tipo de qualidades que diferenciarão um bom lutador de um ótimo lutador, bem como a diferença entre um ótimo lutador e uma estrela e, ainda, uma diferenciação entre uma estrela e uma superestrela.
A qualidade in-ring, as mic skills, o carisma, o seu look, a veracidade dos seus movimentos e palavras, a forma como certo lutador se carrega a si e à sua personagem, a forma como protege a sua credibilidade e legitimidade, a forma como consegue promover o seu trabalho e o trabalho da empresa que representa, a capacidade para motivar multidões e interesse da comunicação social, todas estas qualidades (e muito mais) serão necessárias para formar um main-eventer completo ou perfeito, e daí que poucos sejam os lutadores a atingir esse estatuto, pois são poucos os lutadores a conseguirem reunir todas estas qualidades no seu trabalho.
Agora relativamente ao segundo aspeto, trata-se de uma razão meramente pragmática, diga-se até, “de logística”. Se todos os lutadores forem main-eventers o que torna o facto de um lutador ser main-eventer algo especial? Mesmo que muitos lutadores conseguissem reunir todas as características que elenquei no parágrafo anterior, ou a maior parte delas, continuariam a ser poucos os lutadores que atingiriam o estatuto de main-eventer, porque os main-eventers escolhidos por cada promotora continuariam a ser um reduzido número.
Se todos os wrestlers forem uma estrela, se todos forem bookados com a mesma intensidade para terem a mesma credibilidade, e forem vistos aos olhos dos fãs como todos tendo o mesmo nível, não há nada de especial em ser um main-eventer, porque essa palavra deixa fazer sentido, pois não há não há nenhuma diferença de estatuto. No fundo, como ninguém é um main-eventer no verdadeiro sentido do termo, ninguém é uma estrela, e como ninguém é uma estrela, ninguém é visto como verdadeiramente especial pelo público. Os main-eventers terão sempre de escolhidos a dedo numa pré-seleção de poucos nomes.
Dou-vos até um exemplo concreto. Na WWE de 2000, The Rock e Stone Cold Steve Austin eram mais do que estrelas da WWE, eram “as estrelas” da WWE, pois ninguém era maior do que eles, ou tinha sequer um estatuto parecido. Na WWE de 2020, ninguém é verdadeiramente uma estrela, pois todos os lutadores são apresentados como tal.
Claro que haverá sempre um ou dois nomes que se destacarão (Roman Reigns ou Seth Rollins, por exemplo), mas tudo o resto não deixa de estar ao mesmo nível, trocando vitórias e derrotas constantemente entre si, sem que ninguém sobressaia. Mais! A diferença de estatuto do Roman ou do Rollins para o resto dos lutadores, às vezes, consegue ser tão mínima que nem damos conta dela, e isso passava-se de forma bem diferente com o Rock e o Stone Cold relativamente ao resto do seu balneário.
Hoje em dia, todos os lutadores que se estreiam no RAW ou SmackDown vêm do NXT já com uma boa bagagem de popularidade, e todos se estreiam praticamente da mesma forma, com um enorme hype à sua volta, como a grande novidade, como a próxima grande estrela. Então se são todos apresentados dessa forma, qual é a diferença entre eles? Até no NXT, os lutadores quando se estreiam já são conhecidos dos fãs, ou pelo menos de uma parte deles. Se todos os lutadores têm uma relativa boa base de fãs e, mais do que isso, se são apresentados como já a tendo mesmo antes de se estrearem, quem é que raio se vai destacar?
Neste problema atual estrutural da WWE, na minha opinião, contribuem duas razões, cada uma de cada lado da barricada. De um lado, a WWE, devido à sua política agressiva de contratações em massa, indo buscar os melhores lutadores do mundo sem ter um plano de estrutura para o seu roster e como ele deve funcionar, apresentando-os como uma estrela e colocando-os exatamente ao lado dos seus lutadores. Do outro lado, os fãs acabam também (involuntariamente) por contribuir para esta situação, exigindo que cada lutador que consideram bom lutador seja bookado com algum interesse.
Com o plantel enorme e talentoso que a WWE construiu nos últimos anos, nunca, mais nunca todos os lutadores “bons” poderão ser bookados de forma intensa e com intuito de lhe atribuir um push sério e coerente. Peço desculpa a lutadores que trabalharam de forma muito árdua ao longo da sua carreira, muitos deles dos quais sou grande fã, tais como Cesaro, Shinsuke Nakamura, Apollo Crews, Drew Gulak, etc., mas eles nunca serão main-eventers na WWE, nem têm de o ser. Ser main-eventer é um estatuto que deve ser atribuído a poucos e não a muitos, e, principalmente, para se ser main-eventer da WWE é preciso reunir muito mais características do que o simples facto de se ser bom em ringue ou dar bons combates.
Mas, atenção, a culpa não é dos fãs, eles têm todo o direito de torcer por o lutador que quiserem e quererem para ele o push que entenderem. O que acho que a WWE não pode fazer é olhar à exigência do seu público para bookar todos os seus lutadores da melhor forma possível, porque isso tem um efeito devastador na credibilidade do seu roster: todos os wrestlers são entendidos como sendo estrelas, e não há ninguém que, no meio daquela quantidade irrisória de nomes, que se vai tornar especial aos olhos dos fãs, quanto mais main-eventer ou estrela. Prova disso é que qualquer lutador que se estreie no RAW ou SmackDown hoje em dia, está condenado a ser apenas mais um depois do seu primeiro mês de estreia.
Quanto a este ponto, dizer ainda que, antes, poucos eram os lutadores que chegavam à WWE, sendo esta vista como uma última etapa da sua carreira, como se fosse um “bónus” ao trajeto que tiveram. Hoje em dia, chegar à WWE é já vista como uma etapa normal da carreira de qualquer lutador que, nos EUA, tenha feito o seu nome pelos independentes ou pelas promotoras de main stream como a ROH ou o Impact. Se qualquer lutador com estas características se encontra disponível, a WWE vai buscá-lo, independentemente da sua qualidade ou se combina com o que procura para o seu produto. Simplesmente vai buscá-lo.
Mas voltando ao assunto principal deste artigo, ser main-eventer não é um estado meramente passageiro de um lutador, ou pelo menos não o deveria ser. Se um lutador conquista o título principal da promotora, defendendo-o num sem número de vezes, esse lutador deveria ter atingindo um estatuto que lhe permitisse ser um nome de destaque dentro da empresa e ter um booking que o proteja. É verdade que ser main-eventer não é algo que se atinja só por se ter vencido o título mundial da empresa respetiva, mas esse deveria ser um dos grandes passos nesse sentido, se não mesmo o maior.
Por exemplo, atendamos ao booking da NJPW nos últimos anos. Desde 2012, foram IWGP Heavyweight Champions uma meia dúzia de nomes: Hiroshi Tanahashi, Kazuchika Okada, AJ Styles, Tetsuya Naito, Kenny Omega, Jay White e EVIL. Pelo menos para os primeiros 5 nomes, vencer o título foi a consolidação do seu status de main-eventer na NJPW.
Mas quero ainda mais chamar agora a atenção para a situação do EVIL. Ainda estaremos aqui para ver se o seu reinado este ano lhe foi dado numa perspetiva meramente conjuntural ou estrutural, e se o objetivo era torna-lo main-eventer ou simplesmente ter uma história realmente interessando, deixando-o como grande antagonista do Tetsuya Naito. Mas sabem o que acontecerá mesmo que o EVIL nunca mais volte a ganhar o título? É que o mesmo terá um booking sempre muito certeiro, andando à volta dos diversos títulos e tendo rivalidades importantes. É que para a NJPW, vencer o título é adquirir um estatuto, um estatuto que protegerá o lutador por ter vencido um título que poucos venceram. Isto é algo que para mim faz um imenso sentido, porque se protege não apenas o lutador, como o título e o estatuto que ele dá a quem o vence.
E sem querer novamente bater no produto da WWE, esta, nos últimos anos, tem habituado os fãs a que os lutadores são completamente descartáveis a qualquer momento. É um local onde um lutador pode ser WWE champion durante 9 meses e ser um lutador do low-card no ano seguinte (caso do Jinder Mahal, por exemplo). Esta situação não é boa para ninguém. Tira a credibilidade e expectativa do produto da WWE, tira legitimidade ao título e o Jinder Mahal não se torna não só main-eventer, como numa piada.
E quem diz o EVIL diz o Hirooki Goto relativamente ao G1. Quem vê NJPW sabe da importância que é dada ao seu maior torneio anual, o G1 Clímax, torneio que só os melhores dos melhores da história da NJPW conseguiram vencer, sendo que se diz mesmo que ganhar o G1 é um bilhete para a imortalidade, não só na NJPW como em todo o wrestling japonês. O Goto é um lutador para o qual a NJPW depositou algumas expectativas no início da década, sendo mesmo o objetivo na altura de o tornar um main-eventer. Porém, isso nunca aconteceu, e a NJPW desistiu dessa ideia, mas não desistir do Goto. A NJPW nunca iria permitir que um lutador que já venceu o G1 se fosse afundando no card sem rumo. Sempre lhe deu rivalidades importantes, sendo o meteu à volta de vários títulos, coisa que penso que sinceramente lhe valeu pelas vitórias do passado do que pelo entusiasmo do presente.
Isto permite-me igualmente fazer a ponte para outro aspeto, é que, na minha opinião, ser um ótimo lutador no ringue, sendo condição necessária para qualquer main-eventer, não é, no entanto, condição suficiente para alcançar esse estatuo. Ser main-eventer exige muito mais do que isso. O Goto, por exemplo, sempre foi um ótimo lutador no que aos aspetos dentro ringue dizem respeito, mas faltava-lhe o carisma. Definiria carisma como a capacidade de cada lutador de, pela sua personalidade, conseguir prender a atenção das pessoas no seu trabalho e motivá-las a apoiá-lo. É algo que poucos lutadores a têm.
Mas mais do que ser bom no ringue e precisar de uma dose bem grande de carisma, um main-eventer precisa de se saber carregar enquanto campeão e enquanto estrela. No passado, esse era o exemplo do Ric Flair, com todo o luxo que rondava a sua personagem. No presente, posso dizer que o exemplo que mais me diz nesse aspeto é o NWA World Heavyweight champion, Nick Aldis que, não sendo nenhum lutador extraordinário no ringue, consegue, pelas suas promos, look e a maneira como credibiliza os seus movimentos, ser um excelente main-eventer.
E promos… bem, relativamente a esse aspeto estamos conversados. E saber fazer uma promo no wrestling não implica apenas que saibas falar ininterruptamente, ou de forma simples ou razoável. A forma como um main-eventer completo fala é transcendente à sua personagem, ela é agressiva, cativante e eufórica. Ric Flair, Dusty Rhodes, Stone Cold, The Rock não são só conhecidos por serem dos principais main-eventers de sempre, eles são conhecidos também por serem dos melhores oradores da história do wrestling. E são conhecidos como tal, pois as suas promos batiam certo com a personalidade que a sua gimmick assumia em todas as situações, fossem elas de fragilidade, tristeza, alegria, ódio, fúria ou ironia.
Por conseguinte, ser main-eventer trata-se bem mais do que ser main-event de um show ou de um conjunto de shows, trata-se bem mais de ser campeão, uma ou múltiplas vezes (tirando raros casos), é um estado que engloba muito mais do que isso, é um estado de constância e coerência nos eventos principais e de relevância no seu trabalho.
Por exemplo, o Dolph Ziggler foi campeão mundial 2x e esteve em inúmeros combates pelo título, bem como em inúmeros main-events, isso faz dele main-eventer? O Big Show foi 4 vezes campeão mundial na WWE (6 se contarmos com a WCW) e foi inúmeras vezes main-event, quer de PPVs, quer de programas semanais. Foi até main-event da WrestleMania. Isso fez dele main-eventer? Em ambos os casos, a resposta é afirmativamente negativa.
Como disse no início do artigo há uma diferença entre ser bom lutador e ótimo lutador, entre ser ótimo lutador e main-eventer e entre ser main-eventer e ser uma estrela. O main-event nunca poderá ficar entregue apenas aos main-eventers ou às estrelas, porque estes são poucos e os confrontos entre eles devem ficar reservados para ocasiões tão especiais quanto o seu estatuto. O main-event precisará sempre de nomes que dele não façam parte, mas que por serem bons lutadores do midcard ou até do upper-midcard são nomes credíveis para ocupar essa posição e dar combates com aquela exigência.
Hoje em dia quase que se fala que ser midcarder ou upper-midcarder é algo mau ou insuficiente. Digo a quem pensa dessa forma que grandes lutadores que até hoje recordamos ocuparam essa posição e nunca chegaram ao estatuto de main-eventer: Chris Benoit, Eddie Guerrero, Owen Hart, Christian, Umaga ou William Regal são apenas alguns nomes dos muitos que poderia agora mencionar.
Por fim, dizer que ninguém é main-eventer só por si, os main-eventers fazem-se externamente à sua pessoa. Sim, claro que o lutador em questão terá de continuar a possuir as qualidades elencadas ao longo deste artigo, mas isso por si só também não chega. O booking é extremamente importante na construção de um main-eventer. O booking tem de lhe dar vitórias e, mais do que isso, histórias que nos façam simpatizar/odiar com o lutador, que mantenham o interesse no mesmo e que nos digam que aquele lutador é “o lutador”.
Para isso contam não só as vitórias sobre lutadores do midcard ou do up-midcard, bem como a vitória sobre lutadores que já são mais do que estrelas até, são lendas. Se estas existem, a sua função deve ser ajudar na construção dos futuros sucessores e não ficaram agarrados à sua pequena bolha de privilégio, ao mesmo tempo que destroem o produto e impedem a sua renovação geracional. Os nomes que fazem isto são já conhecidos do Brain Buster e penso não ter que os voltar a mencionar.
Hoje ficamos por aqui.
Até para a semana e obrigado pela leitura.
11 Comentários
É por isso que a NJPW é a melhor empresa do mundo, não só pelos combates, mas pelo booking a longo prazo com seus campeoes e ex-campeoes.
Obrigado pelo comentário. Concordo na íntegra.
Muito bom!
Obrigado!
De nada!
Belíssimo artigo, é bom ver essa sua visão sobre oque é ser main-event, eu nunca havia parado para pensar nisso
Muito obrigado. Vou tentar trazer mais coisas do género.
Muito bom artigo!
Obrigado!
Artigo íntegro e de respeito.
Obrigado.