Valongo, 27 de abril de 2021

Carta aberta a todos aqueles que não são fãs de wrestling

Na passada 6ª-feira, aqui em Portugal, a comunidade de wrestling assistiu a um dos raros momentos em que a modalidade recebeu atenção dos meios de comunicação social e da opinião pública. Raras são as vezes em que tal acontece e, infelizmente, quando os jornais noticiam momentos ou notícias do wrestling fora do nosso país, quase sempre é pela negativa, quase sempre é a dar conta de momentos que, embora fazendo parte da modalidade que gostamos, não a traduzem, não são a sua génese e, muito menos, são frequentes ao ponto de serem problemas estruturais. Desde lesões, mortes e acidentes, são apenas notícias deste género que chegam a Portugal, o que acaba por ajudar, naturalmente, a manter uma imagem junto da opinião geral sobre o wrestling que, muito sinceramente, não define nem sequer se associa ao wrestling. Ressalvo, no entanto, pequenas exceções, como a entrevista da Killer Kelly ao Diário de Notícias e, mais recentemente, do David Francisco ao Record, exceções que se focam nas verdadeiras questões a fazer a quem conhece e pratica o wrestling, mas exceções que ainda são muito poucas e ineficazes no sentido de mudar um pouco a imagem do wrestling no nosso país.

Em Portugal, o wrestling é visto como uma modalidade secundária, como algo sem importância, à qual as pessoas não prestam atenção, não conhecem e têm uma imagem profundamente estereotipada dele. A verdade é que todos nós, na nossa vida enquanto fãs de wrestling já ouvimos “vês mesmo isso? Mas o wrestling é falso, sabes não sabes?”. É daquelas frases que quando nos dizem quase que ficamos sem saber reagir, porque para nós é um dado tão naturalmente adquirido, ao qual não atribuímos importância, muito menos importância pela negativa, pois a forma como nos dizem, até parece que é algo que nos devia fazer ter reticências acerca de se devemos ver ou não wrestling.

O meu objetivo com esta carta aberta não é que ela seja um artigo de resposta ao artigo do Guilherme Duarte, acho que disso já tivemos tempo suficiente para ter, mas sim partir dele para escrever um artigo para aquelas pessoas que não são fãs de wrestling e fazem questão de “gozar” com quem é, sem realmente saber que a razão por que o fazem é tremendamente ignorante. Tudo aquilo que os fãs de wrestling leram naquele artigo é exatamente tudo aquilo que ouvem frequentemente de quem não é fã de wrestling. Aparentemente, era um artigo de humor, e não tanto de opinião, ou se calhar até era suposto ser os dois, no entanto, para ser sincero, não acho que tenha consistido numa coisa nem outra. Porquê? Se dissermos que um filme é editado com efeitos especiais e que poderes sobrenaturais não existem, estamos a dar a nossa opinião? Não, estamos a dizer a verdade, é um facto. Por outro lado, estaremos a tentar fazer comédia? Não, estamos a dizer a verdade, pois, mais uma vez, isso é um facto.

Brain Buster #104 – Carta aberta a quem não é fã de Wrestling

É verdade que durante décadas e décadas as pessoas que trabalhavam no wrestling fizeram de tudo o que era possível para tentar manter o segredo de que os resultados eram pré-determinados fora do conhecimento do público. E para aqueles que não são fãs de wrestling, têm ideia de quando isso foi? Já há cerca de três ou quatro décadas que o wrestling já não é tratado, nem pelas pessoas que nele trabalham como não tendo resultados pré-determinados, como sendo um desporto legítimo. E após 30 anos, muita gente que não é fã de wrestling ainda continua a fazer questão de dizer isto a cada fã de wrestling que conhece, sempre que tem essa oportunidade. Ora bem, se em 30 anos os fãs de wrestling continuaram a ser fãs da modalidade mesmo sabendo disso, será certamente porque isso não é um problema para eles. E mais, se após 30 anos a assistir a wrestling sabendo da realidade que os resultados são pré-determinados ainda continuam a existir, não vos passa pela cabeça de que essa característica do wrestling até contribua para que eles gostem da modalidade?

E até posso ir mais longe se quiserem, porque se após 30 anos vocês ainda fazem questão de reiterar que o wrestling é “falso”, então é porque em algum momento da vossa vida vocês acreditaram que não fosse. Então, se como vocês dizem, o wrestling é tremendamente fake e não há forma de parecer competitivo (spoiler alert: porque não é), por que é que vocês chegaram a percecionar que o wrestling era um desporto legítimo? O mesmo se passou com o Guilherme Duarte, em que começa por dizer que o wrestling é claramente coreografado e no parágrafo a seguir refere que quando o seu pai lhe disse que o wrestling não era real, ele não conseguia acreditar.

Deste modo, depois de lerem isto, pensem duas vezes antes de dizer a um fã de wrestling que o wrestling é não é real ou falso. Ele já saberá disso, e isso será uma das coisas que fazem com que ele mais goste de wrestling, e vocês só vão passar por ignorantes, porque estão a falar de algo que não conhecem, que não vislumbram, de algo que não acompanham ou pesquisam e, acima de tudo, de algo que não percebem. Ao invés de perguntar a esse fã porque ele gosta de wrestling, mesmo sendo pré-determinado, continuam a gozar gratuitamente com ele sobre algo que ele gosta, e a tentar dar-lhe novidades que ele já ouviu há muito tempo. Para vocês que não são fãs de wrestling, fiquem a saber que os fãs hoje em dia continuam a ver wrestling, não porque lhes custa acreditar que aquilo não é real, eles têm mais do que noção disso, eles adoram o wrestling, com todas as suas características, sem exceção.

E quando vocês dizem que o wrestling é falso ou não é real, ou que é coreografado, não estão a usar os termos corretos. Porque se é verdade que o wrestling tem sempre os seus resultados pré-determinados, mais verdade é que há muitas formas de chegar a esse resultado. Sim, há lutadores que combinam toda a sua luta ao pormenor, mas há os lutadores que não o fazem. E dentro dos lutadores que não o fazem, existem aqueles que simplesmente improvisam, e aqueles que competem mesmo até ao momento final e que conseguem completamente fazer a transição da competição para o resultado. Wrestling é muito mais real do que vocês pensam e nada nele é falso. Os strikes (murros, pontapés, chops, etc.) doem e os bumps (quedas) são absolutamente duríssimos. Dizer que isto é “falso” é absolutamente insultuoso, agora nem tanto para os fãs de wrestling, mas sim para os seus competidores, que trabalham no duro todos os dias. E quem achar que não é bem assim, e que isto “não dói” ou que é “fingir que dói”, convido-vos a experimentar um treino de wrestling, basta apenas experimentarem um.

Brain Buster #104 – Carta aberta a quem não é fã de Wrestling

E é aqui que elogio o Guilherme Duarte, pois mesmo no seu artigo, onde de forma ignorante acusa o wrestling de ser claramente um teatro ou um espetáculo coreografado, ele nunca refere que o wrestling é falso, nem tira nada, mas absolutamente nada ao trabalho que os lutadores metem da sua vida na sua carreira. O que eu não posso aceitar é que os lutadores não possam ser designados de “lutadores”. Talvez estarei aqui a dar uma novidade a muitas pessoas, mas o wrestling é o desporto de combate de massas mais antigo do mundo. Sim, sempre houve luta greco-romana ou wrestling amador, mas o wrestling profissional foi o primeiro desporto de combate a mobilizar massas. Não foi o Boxe, o Kickbox, o Jiu-Jitsu e, muito menos, o MMA. Os lutadores de wrestling, que supostamente não se deviam chamar assim foram, durante décadas, os homens mais perigosos do mundo, capazes de vencerem qualquer luta em que estivessem. Todos os desportos de combate que vieram a seguir caminharam no caminho que o pro-wrestling trilhou. Os lutadores de wrestling são os primeiros a poderem reclamar para si esse título, o título de lutadores, o título de wrestlers.

E é aqui que chegamos à próxima questão, aquela que os fãs de wrestling também já ouviram tantas vezes, quando alguém lhes questiona “então, se gostas de desportos de combates, porque não vês Boxe ou MMA?”. Eu explico-vos a vocês, àqueles que não são fãs de wrestling porquê… e a resposta é muito simples…é que o pro-wrestling não é Boxe e MMA e o Boxe e MMA não é o pro-wrestling. Fácil, não é? Mas não perceberam? Bem, da mesma forma que vocês gostam de futebol e não de futsal, que gostam de filmes de Boxe, mas não gostam de Boxe, que gostam de filmes e guerra, mas não gostam de guerras (risos), nós, fãs de wrestling, gostamos de pro-wrestling e não de Boxe ou MMA. Porquê? Porque são coisas diferentes!

Vocês falam como se o wrestling quisesse competir com o MMA, ou como se quisesse ser o mesmo que MMA. Não, não quer, e nós fãs também não queremos isso. Vocês não podem ver qualquer vantagem que o pro-wrestling tenha sobre as MMA, ou porque nos faz gostar mais de wrestling do que de dessa modalidade. No wrestling há a construção de uma história que se desenrola num combate, que tem o objetivo de atingir um momento, um clímax, como uma história de um filme, mas em tempo real e com pessoas reais, ou como um teatro, só que em vez de simples representação romântica ou dramática, acrescenta-se o aspeto físico de uma luta, de um combate. Ora, no pro-wrestling, podemos passar imensas semanas a construir esse combate para esse momento e podemos manipular o combate para o obtermos. No MMA, podemos promover de forma excelente certo combate, e ele simplesmente, no dia, acabar em poucos segundos. No wrestling, o facto de o resultado ser pré-determinado permite criar momentos, emoções e drama que o MMA nunca na vida vai conseguir criar, e guess what, os fãs de wrestling, acima do desporto de combate físico, querem essa história, esse momento, algo em que se invistam e que se lhes seja entregue, e não querem um desporto físico e técnico, que muitas vezes se torna aborrecido.

Percebem agora quando muitos fãs de wrestling não se conseguem controlar quando na opinião pública surge um artigo que, apesar dos fins humorísticos, foi claramente escrito por alguém que não entende o pro-wrestling, a forma como ele é feito, nem sequer como está a sua situação atual neste momento. Os fãs de wresting sentem-se algo insultados, sentem até mesmo a sua inteligência insultada nestas questões. No nosso país, o wrestling é sempre apresentado de forma estereotipada, ridicularizada e, acima de tudo, é passada uma imagem dele que não é verdadeira. Não conseguem perceber porque os seus fãs querem fazer de tudo para proteger a sua modalidade de imagens erradas e artigos ignorantes ou desconhecedores, mesmo que de forma inocente e não propositada? Por vezes são anos e anos com alguma vergonha em admitir que adoram wrestling, e quando vêm o wrestling nas notícias e na opinião pública tratado como algo que ele não é, e como algo que os seus fãs não o vêm, claro que não levam isso de ânimo leve.

E se é verdade que os fãs de wrestling sempre foram alvo de comentários jocosos acerca dos seus gostos pessoais, essa tendência vai aumentar ainda mais nos próximos anos, porque é exatamente isso que acontece em tudo. Há uma política e uma cultura do gosto que cada mais se instala no mundo atual, em que quando as pessoas não gostam de algo criticam e ridicularizam. Só aquilo que pessoa gosta é que é bom, tudo o resto não se percebe como se gosta. Frases do género serão cada vez mais comuns: “gostas de futebol? Para quê, aquilo é um negócio controlado pelo dinheiro”, “gostas de Fórmula 1? Aquilo são os carros que correm e não os pilotos, nem sei por que vês”, “gostas de Basquetebol? Porquê? Aquilo é só homens altíssimos a atirar a bola a um cesto que com a sua altura é fácil de fazer”. Pessoal, gostem de que gostam e deixem os outros também gostar. Vocês não são mais nem menos por gostar de algo que outros não gostam e, em especial, para os fãs de wrestling, que muito provavelmente têm o wrestling como algo que faz parte da vossa vida, algo que vos acompanhou em vários momentos, bons e maus, e que adoram acompanhar, e disso não devem ter vergonha. Digo-vos até mais, deveriam ser os próprios fãs que não deviam mostrar qualquer tipo de vergonha em ser fãs de wrestling perante as pessoas, pois aí estarão quase a dar a entender que as pessoas têm razões para olhar para o wrestling de lado. Se nem os seus fãs são capazes de admitir que gostam dele, então porque as outras pessoas irão ter outra imagem do pro-wrestling?

Brain Buster #104 – Carta aberta a quem não é fã de Wrestling

E também para dizer aos não fãs de wrestling que os fãs da modalidade hoje em dia são muito dedicados a ela. Seguem a mesma tendência dos outros desportos e até programas televisivos. Qual tendência? A tendência para perderem espetadores, mas aqueles que ficam, serem os mais dedicados, que vêm sempre que podem e que conhecem tudo e mais alguma coisa. E é essa tendência que tem levado ao aparecimento de cada vez mais serviços de streaming, e onde o wrestling não é exceção. E se o artigo não é sobre isso, e não me querendo alongar aqui, contudo, que sirva para vos mostrar que o wrestling não está tão alheado da realidade e seja algo tão diferente ao ponto de acharem que vive numa realidade à parte. A barreira que separa a realidade do wrestling, como já referi, há muito que foi quebrada.

E sinceramente não me vou prender em questões como “homens musculados, cheios de óleo e esteroides”, porque é uma afirmação tão errática no wrestling nos dias de hoje…Para já, já estamos num ponto em que as mulheres fazem bom wrestling nos produtos main-stream, não são só os homens. Depois, a história com os esteroides está mais do que documentada, sim, houve uma época em que infelizmente, e repito, infelizmente, eles eram usados com frequência. Mas hoje em dia, com o controlo que se faz a estas questões de saúde, isso já não é uma realidade. E se tiverem interesse basta comparar lutadores de hoje em dia com lutadores do passado e notam-se claras diferenças.

Mas talvez a questão que indigne mais os fãs de wrestling trata-se da ideia generalizada nos países que não têm cultura de wrestling, e até nos que têm, de não ser “normal” pessoas adultas gostarem de wrestling, e já vão com sorte de eu utilizar o termo o “pessoas”, porque aparentemente para algumas pessoas só os homens é que gostam de wrestling. Mas não é normal porquê? Então os não fãs de wrestling passam a vida a comparar o wrestling ao teatro, mas do teatro todos podemos gostar, mas do wrestling aparentemente só as crianças. Como é? Em que é que ficamos? Da mesma forma que no teatro assistimos a uma história, no wrestling também, então porque razão é que vocês acham que chamar teatro ao wrestling é pejorativo?

É que muitas pessoas falam do wrestling como se fosse feito para um grupo de pessoas, designadas também por “nerds”, que gostam de super-heróis, anime, etc., o que não é verdade. Quando é bem feito, o wrestling, tal como o teatro, é intelectualmente interessantíssimo. Acompanhar a história desde o início do combate ao fim, perceber que aquilo que os lutadores fizeram no início do combate teve uma razão de ser e só com isso é que o final do combate faz sentido. Este exercício é algo que muito pouca gente é capaz de percecionar, mais até que a história contada no teatro, essencialmente por palavras. Agora imagem terem de contar essa história através de interações corporais. As mesmas pessoas que relegam o wrestling porque acham que ele não estimula os seus fãs, que apenas querem momentos “fixes” de “porrada”, são as mesmas que se enganam profundamente porque não conhecem o wrestling, nem os seus fãs.

E não pensem que os fãs de wrestling são menos exigentes na qualidade do conteúdo que vêm do que outro tipo de fãs. Os fãs de wrestling não gostam quando as coisas não correm bem, da mesma maneira que os fãs de cinema ou de teatro também não gostam, quando alguém se esquece de uma fala, ou quando o final de um filme não faz sentido, respetivamente. Para um fã de wrestling, um mau combate que exponha a modalidade é uma das coisas mais ofensivas que lhe podem mostrar.

Atenciosamente, Ricardo

6 Comentários

  1. Sandrojr4 anos

    Artigo diferente dos outros mas muito importante para bater de frente com os argumentos dos ignorantes que insistem em críticar o wrestling, gostei, foi diferente do usual mas foi da mesma grande qualidade dos outros, ótimo artigo.

  2. Ultimamente têm vindo artigos completamente diferente dos outros, o que é bom, dá variedade e não te deixa preso a uma formula. Enfim, mais um ótimo artigo, como vem sendo de costume.

  3. ET Billu4 anos

    Artigo integro e de respeito.