Boas a todos nesta grande casa que é o Wrestling PT!

Numa altura em que todos os fãs de wrestling e todos os não-fãs sabem que os seus resultados são pré-determinados, e, mais do que isso, têm na cabeça que o wrestling já não deve ser feito da forma mais realística possível, enquanto competição física em que se possa pelo menos acreditar nas personalidades que nele competem, a velha dinâmica do wrestling que consiste num face vs. heel encontra-se cada vez mais atrofiada. Seja porque os fãs tendem hoje a valorizar imenso e a gostar genuinamente do trabalho dos vilões, sejam por clara incompetência de muitas promotoras, o certo é que correntemente há uma dificuldade enorme em passar para a audiência um verdadeiro conflito ente dois lutadores, impedindo que o heel seja adorado e fazendo com que o babyface seja a maior estrela do programa e da feud em questão.

É realmente muito difícil hoje pedir a uma audiência que conhece bem o wrestling que vaie um heel quando o mesmo consegue ser tão divertido e realizar um enorme trabalho, assim como cada vez se mostra difícil construir um babyface que esteja realmente over com os fãs, enquanto wrestler, mas sobretudo como personalidade. E isto seja porque os bookings ainda não entenderam as tendências dos fãs atualmente, seja porque cada vez menos wrestlers são verdadeiros heels, preferindo mais frequentemente querer ser os anti-heróis ou “heels cools”. Na verdade, não existem “heels-cools”, porque se um heel é cool e recebe pop do público não é verdadeiramente um heel. Um heel não pode ter quase nada que os fãs gostem, tem que antagonizar ao máximo a vitória e o sucesso do herói, e para isso precisa de ter heat, de ser odiado. Caso contrário, as reações dos fãs à história que está a ser contada são completamente contraditórias e acabam por estragar um pouco o wrestling apresentado.

Brain Buster #116 – O herói que precisamos

Não obstante, não dou esta dinâmica como totalmente perdida. Mais do que usada no wrestling durante décadas, ela já é transversal ao wrestling, sedimentou-se com ele e dele nunca deixará de estar associada. O que irá acontecer é haver uma evolução da dinâmica face vs. heel da mesma maneira que o próprio wrestling também evolui. Continuo a achar que a mesma continuará no wrestling, mas apenas de forma diferente. Duvido que daqui para a frente existam muitos heels no verdadeiro sentido do termo, um pouco como acontece no puroresu, em que não há verdadeiramente heels, mas apenas um conjunto de personalidades fortes que os fãs querem ver a entrar em confronto, de entre as quais se sobressarem sempre dois ou três nomes que estão mais over com o público. Mas não também a esse nível, pois o público americano não é o público japonês, nem nunca se vai comportar totalmente como ele.

Por isso, a crowd americana deve ser trabalhada a meio-termo, procurando sempre realizar várias histórias, rivalidades e angles usando uma dinâmica mais clara e simples. Simplesmente, talvez teremos de deixar de achar que aspetos que associamos aos vilões sejam apenas deles daqui para a frente, podendo a arrogância, a brutalidade, etc. passarem também a ser aspetos de babyfaces. Mas como disse, esta dinâmica não se perdeu, nem alguma vez se vai perder, e haverá sempre aspetos que devem fazer o público odiar determinado lutador e gostar do seu adversário. Wrestling feito de outra maneira não terá, a meu ver, o mesmo interesse, a mesma cativação ou sequer o mesmo divertimento.

Esta pequena contextualização para dizer que há, atualmente, uma história com uma dinâmica mais tradicional que está a resultar às mil maravilhas e que prova que mesmo com o tipo de fãs mais hardcore, há truques aos quais o booking sempre pode recorrer para atingir uma história do género. Estou a falar, claro está, da feud atual entre a Elite e a Dark Order e, principalmente, dentro da mesma, entre o Kenny Omega e o Hangman Adam Page. Apesar de estar a realizar-se numa empresa com os fãs mais conhecedores do wrestling, numa empresa que já referiu que não tinha bem faces e heels e que isso eram termos do passado (o que é totalmente falso, pois a construção de cada combate é sempre feita a partir deles, mesmo os da AEW), a verdade é que temos um heel que, apesar de ser dos melhores lutadores da modernidade e acarinhado pelos fãs fora dos ecrãs e dos ringues, é sempre recebido com insultos e vaias, e isto porque há um babyface que teve uma relação com ele que interessa aos fãs e uma personalidade cativante por quem os fãs podem torcer para derrotar o primeiro. O Hangman Page é, sem dúvida, o herói que nos precisávamos para derrotar o Omega e ser o novo campeão da AEW, é por ele que queremos torcer, numa das poucas histórias deste género atualmente em que o público se encontra do lado correto.

Brain Buster #116 – O herói que precisamos

E isto acontece porque tudo contribuiu para tal. Não só o booking foi muito próximo do excelente, embora não perfeito (como nunca seria numa storyline que dura à tanto tempo), como a própria contribuição dos lutadores envolvidos foi a correta. Quando ao primeiro aspeto, esta história começou logo com o pé direito. E porquê? Bem, porque numa história em que temos um herói que irá triunfar, ao escolher esse herói, convém que ele esteja over com o público. Ao contrário do que a WWE fez durante anos, por exemplo, com o Roman Reigns, de pegar num lutador que via como a próxima grande estrela e esperar que o público gostasse dele, a AEW pegou num lutador do qual o público já estava anteriormente do seu lado, a ponto de ter das melhores, se não mesmo a melhor, reação dos eventos. Pois bem, numa história destas, de topo, exige-se então que se escolha o herói correto e no qual os fãs não sintam que o estão a fazer um favor em o pushar de forma forçada.

Continuando, a história que se seguiu durante quase estes dois anos também foi a correta, e raramente teve erros que fariam os fãs não continuar a torcer pelo Page. Tudo começou com o Page a duvidar de si mesmo por ter chegado aquele nível, se pela sua competência, se pelas suas amizades, e por isso a querer afastar-se da Elite para provar o seu valor. Com isto, os seus amigos, os Bucks e o Omega não compreendiam o que ele queria e eram egoístas ao ponto de não respeitarem a sua opção. Seguiu-se o reinado com os títulos de equipas com o Omega que serviu para lançá-lo numa plataforma onde pudesse mostrar o seu talento e ter exposição para mais fãs, sendo por isso que saiu a maior parte das vezes como a estrela de todas as title defenses. Aquando da perda dos títulos, e quando claramente deu tudo o tinha, os seus amigos viraram-lhe as costas definitivamente. Era impossível não sentir empatia por ele.

Infelizmente, é nesta altura que a AEW tem a primeira grande perda da sua história, a morte do Mr. Brodie Lee, mas que abriu uma janela para incluir nesta história a Dark Order, que passam a ser os companheiros de combate do Hangman e os amigos que puxaram novamente a sua carreira para cima, através da boa disposição e de, principalmente, o compreenderem. E isto foi uma parte da história que podia ter arruinado um pouco as coisas, dado que a Dark Order, na minha opinião e na qual não estou sozinho, era uma nulidade na programação da AEW e composto por lutadores desinteressantes, alguns deles que não pertencem a este nível. No entanto, acabaram por ser uma parte extremamente importante nesta história, principalmente agora que o Hangman precisa de companheiros de guerra para combater as táticas da Elite.

Mais do que isso, em todos os momentos o plano era para o público torcer pelo Hangman, ter empatia com ele, querer que ele seja mais do que é, que confie que é mais do que o que pensa ser, de seguir em frente sem medo pois terá o público e a Dark Order consigo. Prova disso foi inicialmente não querer desafiar o Omega pelo belt, mas ter sido puxado pela Dark Order a fazê-lo, recebendo um grande pop quando finalmente entra em contracto com o campeão e o confronta cara a cara. Grande prova enquanto babyface é também a confiança que se tem nos verdadeiros amigos, por mais dificuldades e handicaps que eles tenha, e foi por isso que quando foi desafiado para o 5-on-5 Elimination match em que pode perder ou ganhar tudo e em que vai lutar ao lado de lutadores pouco conhecidos e credíveis contra as estrelas da Elite, o Hangman não hesitou em dizer que sim, pois confia nos seus companheiros e que se no final acabarem por cair, caiem todos juntos. São estes aspetos, estes pormenores, que fazem toda a diferença.

Brain Buster #116 – O herói que precisamos

Por seu turno, se de um lado tínhamos a fragilidade e depois lentamente o reganho de confiança, do outro lado tivemos o Omega a tornar-se cada vez mais no lutador que precisamos de detestar e que queremos ver enganado e derrotado, isto é, não só queremos ver a sua reação de desilusão quando perder o título, como querermos que o mesmo seja provado errado por ter deixado o Hangman sozinho quando perderam os títulos de Tag Team. Para tal, a capitalização de heat também foi feita, e muito bem feita durante os últimos 9 meses, com o mesmo a precisar sempre de batota para vencer, a insultar os fãs, a fazer tudo aquilo que eles não queriam ver, etc. O Page tornou-se então no lutador em quem nos revemos, por quem vamos torcer até à última instância, para que veja sua jornada de trabalho ser recompensada.

Como disse, a velha dinâmica face vs. heel ainda existe, ainda é possível e nunca se desassociará do wrestling, e mesmo com o atrofio que tem sentido nos últimos anos, acredito que será sempre uma questão de tempo até se reajustar às novas tendências entre os fãs de hoje em dia (pelo menos assim espero). Neste caso, para além da boa prestação do heel, dentro e fora da rivalidade, foi mais fácil meter os fãs do lado do Hangman numa história em que ele duvida de si mesmo para mais tarde reganhar confiança, do que o torná-lo no tradicional babyface que é sempre enérgico, que é uma estrela que nunca duvida de si mesmo e que luta não importa as improbabilidades que tenha de enfrentar. Não só as estrelas e histórias não têm de ser todas iguais, como se têm de adaptar ao público e ao tempo em que acontecem. Esta história foi um exemplo quase perfeito de como combater as reações contraditórias do público em relação à história a ser contada e que deve chamar a atenção de todos os envolvidos no wrestling atual.

Hoje ficamos por aqui.

Até para a semana e obrigado pela leitura.

10 Comentários

  1. Sw3 anos

    Texto fantástico. Uma história que já vem de longe. E qual será o final? Será que vai realmente acabar no All Out?

  2. sandro castanho miguel bragado3 anos

    obrigado !.

  3. Grande artigo. Foi uma boa forma de rever tudo o que se passou na rivalidade antes deste 5-on-5 Eliminator match xD

  4. Belo artigo, concordo com absolutamente tudo. Destacar o booking da AEW, simplesmente genial

  5. SandroJr3 anos

    Essa está sendo a melhor rivalidade do wrestling atualmente, pois além de está sendo trabalhada a um longo tempo, tem o quesito sentimental pelo fato deles já terem sido amigos e o Hagman não querer atacar o Omega, simplesmente incrível. Ótimo artigo