Boas a todos nesta grande casa que é o Wrestling PT!
Uma das coisas maioritariamente associadas ao pro-wrestling, não só enquanto modalidade de combate, mas também enquanto competição física, é a presença de vários prémios que os seus competidores podem vir a ganhar. Entre títulos, torneios, sejam eles em formato de liga ou de eliminação direta, ou até outros tipos de combate, que pela sua estipulação mais elaborada e presença de vários competidores, acabam por ter uma importância e uma aproximação muito semelhante aos próprios cintos e torneios. Tratam-se de vitórias com as quais a esmagadora maioria dos lutadores sonha em conquistar e que trazem maior interesse por parte dos fãs ao wrestling que estão a ver.
Todos estes prémios têm a mesma função história que os seus semelhantes de qualquer desporto, que é evitar a competição pela competição. Vejamos, o interesse à volta de um jogo de futebol seria com certeza bem menor se o mesmo não fizesse parte de um campeonato onde as equipas precisam de fazer pontos para ficarem o melhor possível na classificação, como é o caso de um singles amigável. Da mesma forma, qualquer combate de wrestling sem algo em jogo, apesar do seu interesse enquanto modalidade de competição, terá certamente muito menos interesse que um outro combate em que haja um título em jogo, em que se dispute a contendership ao mesmo, que faça parte de um torneio, etc. Servem, por outro lado, para premiar os melhores dos melhores, e para distinguir as estrelas à volta da qual o interesse de uma promotora gira dos restantes lutadores. São o objeto que permite a um novo fã de certo produto ou a um não-fã que por acaso calhou e ver/ouvir algo sobre o mesmo identificar imediatamente quem são as principais caras do programa em questão. Os títulos, principalmente, pela individualização física e estética que fazem pela sua presença à cintura de determinado lutador, fazem, automaticamente, também a sua individualização individual do restante coletivo de lutadores.
O que quero com isto dizer é que os títulos no pro-wrestling devem ser vistos essencialmente como acessórios, porque não são um fim em si mesmos, eles são e devem ser sempre um meio para atingir determinado fim. Não obstante, a presença de títulos e torneios não é sempre uma condição necessária para a construção de uma estrela, pois esta pode vir a formar-se sem eles, e mesmo quando o são, digo-vos, contudo, que também aí não serão condição suficiente. O mundo do pro-wrestling é, de facto, um mundo bastante complexo e tudo o que possa resultar com determinado lutador/história pode não funcionar em nada com outros lutadores/histórias. Tudo depende do lutador e história em concreto e do objeito a atingir com os mesmos.
Por exemplo, se para uma estrela como um Ric Flair ou, mais atualmente, um WALTER, que respiram e transpiram a imagem de um verdadeiro campeão de pro-wrestling, possuir um belt a maior parte do tempo é bastante crucial, pelo contrário, para estrelas como o Undertaker, Dusty Rhodes, entre muitas outras, já maiores em si mesmas do que qualquer título, não há grande necessidade de colocar nelas um belt. Eventualmente, poder-se-á fazer dessas estrelas campeãs para premiar o seu excelente trabalho, dar um grande pay-off ao público e aos seus fãs ou até para credibilizar o título que passa a estar nas mãos de uma grande estrela. Mas são situações em que os belts não são necessários, porque a estrela em questão já está mais que identificada e individualizada dos restantes lutadores. E se estas ideias parecem particularmente simples e clássicas, no sentido em que farão sempre sentido no mundo do pro-wrestling, é estranho que hoje em dia tenha a perceção de que cada vez menos se pensa assim, especialmente na grande liga, a WWE, que cada vez mais olha para um título como um fim em si mesmo, e não apenas como um dos meios de criar uma estrela, ideia esta que com o passar dos anos também sinto cada vez mais nos próprios fãs.
Olhando para o roster da WWE e até para qualquer card dde um PPV seu, vemos a WWE cheia de títulos, retirando o significado e a aura de especialidade àqueles que realmente deveriam ser tidos como importantes e outros que, apesar de menos relevantes, representam algo. É verdade que isto acontece muito porque a WWE apresenta três diferentes brands (quatro, se contarmos com o NXT UK), mas se virmos bem, cada brand tem imensos títulos ela mesma sem que seja preciso. Qual a necessidade de haverem 2 títulos de Tag Team em duas brands absolutamente iguais (RAW e SmackDown)? Qualquer a necessidade de haverem dois títulos de Tag Team femininos quando não há talento e matéria-prima para tal? Qual a necessidade de 2 títulos mundiais, masculinos e femininos absolutamente idênticos? Seria assim tão difícil bookar apenas um grande campeão, masculino e feminino, que aparece em ambas as brands? Qual o capricho de tantos títulos, iguais entre si, e sem significado nenhum?
Quase todos os combates em PPV são por um título, quase todas as histórias em TV giram à volta de títulos. Que aconteceu aos problemas pessoais entre lutadores que não envolvam um belt? Porque grande parte das blood feuds começam sempre à volta de um cinto? É que há histórias que se devem até contar sem a presença de um título, isto porque se o título deve ser sempre sentido como o grande prémio e a grande conquista, não pode ficar em segundo plano numa feud em que os lutadores deixam a vontade de ganhar o título à parte, e focam-se apenas em derrubar o seu adversário, provocar-lhe dor, vingar-se dele, etc. Esta ideia existe cada vez existe e, pelo contrário, material físico acessório sem significado existe cada vez mais.
E este pensamento também se concretiza porque a WWE apenas se limita a deixar um lutador em que está mais ou menos interessada sem fazer nada durante meses até que tem uma oportunidade de o colocar enquanto desafiante a um dos seus inúmeros títulos. Ora, antes não conhecemos nada do lutador, a sua história, a sua capacidade, a sua atuação perante várias adversidades, e é nesta condição que todos entram numa luta por um dos vários títulos sem significado. É apenas mais um desafiante, mais um campeão, mais um título, mais um title match, é só mais um, mais um, mais um e mais um, não há ninguém que se destaque, ninguém que consiga chamar a atenção, nada, tudo isto é um 0 dos grandes, uma nulidade absoluta.
Por outro lado, note-se que nenhuma vitória do título funciona em si mesma para deixar alguém no topo. Que significado pode ter a vitória de um título ou torneio, de um King of the Ring ou de um Royal Rumble, por exemplo, se a seguir o booking continua a ser roleta russa, em que os vencedores dos torneios são deixados em banho maria a ver o que se pode fazer com eles e os desafiantes a um novo campeão são escolhidos de mês a mês de acordo com o que calhar? Que momentum se cria aqui? Que interesse se pode ter? O que isto significa? A resposta a todas essas questões é exatamente o que estão a pensar. Os títulos servem, de facto, como uma catapulta para elevar um lutador, não porque passa a ser possuidor de um cinto físico, mas porque isso significou que venceu anteriormente um grande campeão, ou que carregou a promotora a que pertence às costas, etc.
Como disse, nenhum título é um fim em si mesmo, ou seja, nenhum título faz de alguém uma estrela, um título é um acessório no wrestling e não a coisa mais importante, diria até que num universo de coisas importantes no wrestling da posição 10 a 1, os títulos aparecem na posição 129. São os combates que disputam esse belt que o irão fazer importante e o tornarão no símbolo de excelência, é a história de um campeão dominante ou muito esforçado que o farão continuar a ser destaque depois de se tornar campeão. O título é, assim, um dos meios para formar uma estrela, e não é sequer o mais importante, pois terá sempre de ser conjugado com a personalidade das pessoas que lutam por ele ou que o detêm, pelas histórias que o envolvam, pela aura de especialidade que eventualmente se venha a criar à sua volta a partir daí, mas nunca um mero bocado de couro artesanal determina alguma coisa por ele sozinho.
Depois claro que este tipo de tratamento e booking tem outros efeitos. Primeiro, os próprios lutadores (marks de si mesmos, como aliás já escrevi), trabalham apenas a pensar no dia em que poderão segurar um dos muitos insignificantes belts que a WWE coloca em jogo, ou até mesmo o Royal Rumble, e sentem que isso é o fim de qualquer jornada, satisfazem-se com isso e pensam que nada melhor poderia vir a seguir. Querem ter as placas personalizadas no seu cinto, tirar fotos com o Triple H com ele, ter foto e perfil para as redes sociais, e ficam-se por aí. E isto tudo também porque são incentivados pela WWE a fazê-lo. É tudo feito sem qualquer conteúdo, sem qualquer significado, é tudo oco e vazio, artificial e falso.
Por outro lado, os poucos fãs de WWE que sobram que ainda conseguem ver todos os programas semanais regularmente como se fosse uma religião, principalmente nos mais novos, pensam que o wrestling sempre foi feito desta maneira. O seu tipo de interesse e conversas geram à volta do “quem será que vai tirar o NXT North-American title ao Swerve?”, “que mau, vão mesmo fazer da Raquel campeã? Preferia mil vezes a Dakota Kai”, “este reinado do Apollo não presta”, etc. Todas as conversas giram à volta de títulos e campeões e desafiantes e booking, e eu apenas me interrogo que tipo de interesse uma conversa destas tem? Onde está o interesse pelo crescimento de uma estrela? Onde está a conversa sobre um combate que significou muito para determinado lutador e para os seus fãs? Onde está a história de superação pessoal de um lutador?
Os títulos enquanto material não são nada, são apenas um objeto físico que serve de acessório. Por exemplo, não importa com quantos reinados a Charlotte vai acabar no final da carreira, dado que 90% deles significaram zero! Até podia ter 56 reinados como os que teve até agora, que isso, por si só, nunca faria dela overpushed ou overrated. No fundo, todo este tratamento dado a um aspeto que costumava significar grandeza no pro-wrestling e que agora não passa de um objeto físico é só mais uma consequência do booking pelo qual a WWE enveredou nos últimos anos, de quantidade acima de qualidade, de curto-prazo em vez de longo-prazo, de fast-food em vez de arroz de cabidela. Mas pior do que se magoar a si, enquanto líder do mundo do pro-wrestling, também o magoa a ele, determinando tendências erradas acerca de várias coisas que durante um século fizeram o wresting interessante.
Hoje ficamos por aqui.
Até para a semana e obrigado pela leitura.
4 Comentários
Ótimo artigo, bem interessante esse assunto.
Obrigado.
Bom artigo, fez-me pensar muito nesse assunto e muitas das coisas eu concordo, mas mesmo assim um título ainda têm importância não pode ser só visto como um objeto, não é qualquer um que têm “porte” para ser campeão. Mas não ser campeão também não é o fim do mundo e não significa que este lutador esteja abaixo do outro. No mais ótimo artigo.
Obrigado pelo comentário.