Já falta pouco, jovem aprendiz. Tens todas as ferramentas do teu lado – se acompanhas este espaço, já sabes por onde começar e até como ir treinar ao estrangeiro, para mais tarde chegares à WWE. Com uma pontinha de sorte, até poderás ser campeão.
Mas, se lês os meus artigos, também sabes que o Wrestling é apenas uma parte do trabalho. Aqueles 10 minutos no ringue podem saber muito bem, mas são apenas uma fracção das 24 horas que cada dia te oferece. A maior parte do tempo não é ali, a trocar wristlocks e a cortar promos – é passado na estrada.
Vais passar aqui mais tempo do que no ringue
Qualquer artista passa por este problema – gosta de fabricar a sua arte, mas para a conseguir divulgar (e para sobreviver financeiramente) terá de constantemente mudar de sítio, para que mais pessoas conheçam o seu trabalho.
Nem as maiores bandas do mundo sobreviveriam se tocassem todos os dias na mesma cidade. Terás de combater pelo mundo fora – infelizmente, por este motivo, fica menos tempo para a arte em si e o trabalho torna-se cada vez mais um estilo de vida.
Viajar enquanto estilo de vida
A maior parte das pessoas que conheço gosta de viajar. É excelente tirar uma semana de férias para conhecer um país diferente, uma cultura nova e testemunhar aquelas vistas que só vimos na televisão ou no Google Earth.
Aproveitamos para escapar à vida real e somos bombardeados com informação nova por estarmos fora do nosso habitat. No entanto, se tens o desejo de ser lutador a tempo inteiro, terás que entender que essa será a tua vida real – e não são propriamente férias para a vida.
Antes de mais, terás de entender se esse é um estilo de vida que se encaixa em ti. Até que ponto estarás disposto a viajar pelo mundo apenas para aqueles 10 minutos diários? Farás amigos, é certo, mas cada um com o seu próprio calendário para gerir. Estarás fora de casa a maior parte do tempo. E vais passar por muitos períodos bem aborrecidos, em que a tua única desforra será aquele tempo no “squared circle” – vai chegar?
Estas perguntas só tu saberás responder, é claro. Não será na primeira viagem que fizeres, nem na segunda, que saberás – tudo será novidade aí. Mas se de algum modo isto passar a ser a tua vida, aí sim, terás a resposta.
A maior parte dos lutadores profissionais sente que “tem 2 vidas”. A vida pessoal, na sua terra com a sua família, os seus amigos e os seus hábitos e a vida enquanto lutador, com a sua outra família (os colegas de trabalho), os hotéis e os carros alugados.
O equilíbrio é difícil de alcançar. É uma das razões para tantos lutadores ficarem desorientados quando se retiram do negócio e gerir a relação na estrada não é propriamente fácil de se fazer – um dos maiores motivos de orgulho do meu mentor Lance Storm não é a quantidade de títulos que acumulou ou o número de cidades que visitou, mas sim o facto de ainda estar com a sua esposa passados 20 anos.
São questões mais introspectivas e não adianta muito desenvolver aqui – cada caso é diferente e só descobriremos que tipo de história foi a nossa quando chegarmos ao fim.
Agora que isto está fora do caminho, vamos rodar a chave do nosso carro alugado e seguir em frente!
No circuito independente (ie Península Ibérica)
Quem me conhece sabe que gosto de falar por experiência própria – tive a felicidade de lutar praticamente sempre num raio de 300 km de casa e recebi, enquanto membro do WP ou da WSW, lutadores estrangeiros.
Por vezes estava fora de casa 2 ou 3 dias, noutros ia ao evento e ainda chegava a dormir no meu quarto. De norte a sul, no litoral e no interior, tive a oportunidade de realizar várias viagens, com muitas histórias engraçadas pelo meio.
Tendo em conta esse background, gostaria de partilhar contigo algumas dicas e abrir um pouco o livro sobre esta vida.
#1: Chegar a horas
Sem surpresa, este é o primeiro conselho que te posso dar.
Aqui, a importância deste ponto dependerá do promotor e do local onde o evento acontecerá. Vamos assumir que este é um daqueles casos em que o evento é a 150km da tua cidade e vêm 2 lutadores da Alemanha. Geralmente vai haver um ponto de encontro comum para todos (ficando alguém da organização responsável por trazer os alemães do aeroporto até lá) e a partir daí iremos juntos (num autocarro ou em carros separados) até à primeira paragem (que poderá ser o hotel, o recinto ou um local para fazer promoção do evento).
Como em tudo… tenta chegar sempre a horas!
A primeira dica é óbvia: vamos todos juntos, portanto todos os minutos poderão ser necessários a alguém. Há tempos que têm de ser respeitados e deves isso aos teus colegas – tenta chegar sempre a horas!
#2: Falar a toda a gente
Eu diria que este ponto se resume a “boas maneiras”, mas alguns lutadores são tão obcecados com o mítico networking que sentem que essa saudação é tremendamente importante para lhes trazer futuro negócio.
Por algum motivo, alguns lutadores são muito sensíveis e ficam zangados se não forem cumprimentados; podes ser novo e ficar no teu canto apenas por seres tímido ou reservado, mas eventualmente serás visto como uma pessoa arrogante que não quer “ser da malta”.
Por este motivo (e para agradar a todos), mais vale dizeres olá a toda a gente que estiver à tua frente quando chegares, especialmente se fores um total desconhecido.
#3: Estar disponível
O circuito independente não é a WWE. Se pensas que vais a dormir durante a viagem, ou que chegarás ao recinto e só terás de te preocupar no combate, terás uma bela surpresa pela frente. É certo que o combate é a razão pela qual te trouxeram, mas o teu trabalho começa a partir do momento em que chegaste ao ponto de encontro.
Poderás ser convidado a conduzir. A montar o ringue. A ir para a rua distribuir flyers. A entreter um jornalista que acabou de chegar e que quer saber se isto é a sério ou não.
O que te pedirem para fazer… fazes. Mostra-te disponível.
#4: Entender que não são férias
Este ponto reforça o anterior – talvez o promotor seja simpático e até tenha reservado um belo hotel para ti. Talvez viajes num autocarro de luxo e não num carro apertado.
Mas não estás de férias e a tua mentalidade deve reflectir isso. Não chegues atrasado aos compromissos porque foste tirar fotografias à cidade. Não faças birra por teres de estar na arena 5 horas antes do evento. Não desapareças a meio da viagem porque tinhas de ir às compras.
Lembra-te: se não houvesse espectáculo, nem sequer estarias ali.
Escuta o que o tio Ambrose te diz
#5: Praticar bons hábitos
Se leste este artigo, saberás a importância de comer bem e treinar regularmente.
Em viagem é difícil praticar as mesmas rotinas que tens em casa. Não terás refeições às mesmas horas nem irás ao mesmo ginásio. Podes estar num carro 4 horas e saltar uma refeição, ou visitar um restaurante que tem opções limitadas. Podes ir a sítios sem ginásios ou podes simplesmente nem ter tempo para treinar. E quando o show acabar, podes ir com a malta para os copos ou seguir para o hotel descansar.
Aqui, não vou ser teu pai: terás de encontrar um equilíbrio. Se ias ao ginásio 5x por semana e agora de repente estás na estrada essas mesmas vezes e nunca tens oportunidade, pensa que a médio-prazo essa ausência terá impacto no teu look e no teu rendimento. Terás de arranjar uma solução. O mesmo se aplica aos teus hábitos alimentares.
Sair com a malta não tem mal nenhum, mas se passares a dormir 3 horas por dia, poderá haver um dia que alguém vai de cabeça num golpe. Tem isso em consideração. E nem vale a pena falar sobre drogas, certo?
O estilo de vida que decidires adoptar aqui terá um enorme impacto no tipo de pessoa que te tornarás. O Wrestling está cheio de histórias infelizes, que certamente já conhecerás de cor e salteado. A vida na estrada não é fácil mas cabe a ti encontrar uma forma de fazer com que esta vida funcione para ti.
Se tens um espectáculo de vez em quando, é normal que não te preocupes muito com estas questões – nem devias. Mas se estar na estrada se tornar a tua rotina, sem dúvida que deves procurar uma forma de comer bem e treinar, nem que seja no hotel.
Na WWE
Aqui vou ter de fazer aquilo que não gosto: de falar do que leio e ouço e não por experiência própria. Não me vou poder alongar muito, mas gostaria de salientar algumas diferenças.
No circuito independente o mais provável é não receberes muito pelas tuas actuações, mas também não terás despesas. Enquanto estiveres com o promotor, terás o hotel assegurado por ele, os restaurantes pré-reservados (e a conta paga) e a questão das deslocações também já resolvida. Convém esclareceres isso a priori, mas geralmente é cortesia ser assim.
Na WWE, ao contrário do que se possa pensar, o processo não funciona da mesma forma. Numa tour Europeia será similar (como aquela que está a começar agora), mas no dia-a-dia nos EUA não.
Um autocarro da WWE
A WWE garante o vôo do estado em que o lutador se encontra/reside até ao estado em que a ronda dos eventos começa, mas a partir daí o lutador está por si – terá de gerir o seu dinheiro para decidir que carro alugar, com quem viaja (para ficar mais barato), onde come e onde treina. Basicamente, pode fazer o que quiser, desde que chegue a horas ao recinto do espectáculo seguinte. Terminada a ronda, a WWE garante novamente o regresso do lutador até ao seu estado, repetindo o ciclo na semana seguinte.
Apesar de neste cenário ganhares substancialmente mais, terás de ser inteligente nas tuas despesas – a carreira de lutador pode ser curta, o risco das lesões está sempre lá e gastar todo o teu salário em bons carros e bons hotéis não te servirá de muito quando fores para a reforma.
Os famosos autocarros
Nem todos os lutadores ficam em hotéis e viajam em carros alugados. John Cena, Randy Orton ou Big Show são lutadores que optaram por alugar um autocarro de luxo.
Não, este autocarro não é meu
Naturalmente, este é um investimento considerável, que nem todos no plantel poderão fazer, especialmente se a carreira estiver no início. No entanto, as vantagens são claras:
– não há preocupações com hotéis;
– mais horas de sono (visto que têm alguém que conduza por eles);
– melhores cuidados com o corpo (fruto do descanso e da possibilidade de alongar/fazer gelo/etc imediatamente após os combates em condições).
Aquilo que poderá parecer “coisa de ricos” é na verdade um investimento bastante inteligente para prolongar as carreiras das maiores estrelas, garantido-lhes assim uma reforma ainda mais gorda. Sem dúvida algo que mais lutadores devem considerar para o futuro, se o dinheiro o permitir.
Esta semana é isto que tenho para vocês pessoal. Já todos viram o WP9? Espero que sim! Já sabem que podem chegar a mim via comentários/mensagens/tweets!
13 Comentários
Mais um ótimo artigo que eu como fã de wrestling adorei, continua o bom trabalho!
Obrigado Bammer!
Obrigado por leres e pelas palavras! 🙂
Ótimo artigo, realmente deve ser difícil viajar para vários lugares sem nem ao menos passear um pouco conhecer os pontos turísticos, fora a fadiga acumulada, é necessário muita força de vontade! Valeu Bammer.
Bammer, sua opinião a respeito das companhias de Backyard Wrestling para aqueles que não moram em uma cidade que tenha uma escola profissional.
Excelente artigo novamente Bammer. Tenho uma dúvida, em empresas como a NJPW, Pro-Wrestling NOAH e TNA, que não são consideradas empresas indys, como é feito esse “esquema”? Da forma da WWE em que é cada um por sí ou no esquema das indys que o promotor te guia? Obrigado desde ja!
Thanks! 🙂
Não tenho nada contra o backyard, se for uma forma de tentar replicar aquilo que se vê na televisão com atenção, cuidado e segurança. Todos temos de começar por algum lado… e se não houver escolas por perto, não acho errado que se pegue num grupo que partilha o mesmo gosto por Wrestling e se tente entender como algumas manobras/combates são feitos.
Dito isto, sou claramente contra combates em trampolins e mergulhos para cima de mesas a partir de telhados. “Stunts” e cenas para o Jackass não merecem ter “Wrestling” no nome.
Na verdade, eu estou a gerir um. Dá pra fazer uma boa luta sem alguns moves complexos dentro de um backyard. Nada de piledrivers por aqui ou alguns saltos. Só o mais básico, mas dá para emendar uma grande match.
Excelente artigo, mais uma das minhas maiores dúvidas está resolvida! Obrigado!
Obrigado eu por leres 🙂
Excelente. Nem tenho nada a acrescentar, muito bem organizado e com um texto muito inteligente. Obrigado mais uma vez por um belo artigo. Parabéns.
Thanks! 😀
Boa questão, não tenho absoluta certeza, mas penso que o regime indy se aplica em quase todos os casos.