No mundo louco que é o Wrestling, muita coisa inesperada te poderá surgir. Se pensas que a tua tarefa se resumirá a ir à escola de Wrestling e andar pelas cidades a conhecer as arenas, os balneários e os ringues, podes tirar desde já o cavalinho da chuva – será bem mais interessante (e surreal) do que isso.
As boas notícias? A grande maioria das experiências melhoram-nos enquanto lutadores; as outras poderão não ser tão valiosas, mas no mínimo ficam boas histórias para contar. Ao fim do dia, tudo vai valer a pena.
Neste artigo, vou-me dedicar à experiência de comentar Wrestling e como esta prática te pode melhorar no ringue. À semelhança de artigos anteriores, hoje não conto a minha história sozinho – convidei a equipa actual da WWE na SportTV, Jorge Botas e Bruno “Korvo” Almeida.
Um pequeno disclaimer
Antes de avançar, gostaria de abordar um tópico que poderá ser fruto de comentários mais tarde: a questão da localização dos programas WWE e TNA em Portugal. Este não é um assunto directamente relacionado com o (aspirante a) lutador, mas ainda assim considero pertinente mencioná-lo aqui.
Quando há canais nacionais interessados em transmitir Wrestling, existe uma preocupação em legendá-los ou adaptá-los para a nossa língua. Como a tradução é um processo bastante moroso e consome bastantes recursos, os senhores que tomam as decisões importantes dos canais de televisão optaram por recorrer a comentadores portugueses para que o produto fique disponível a tempo e horas.
Sendo o nosso Portugal um país relativamente pequeno, para a ocupação destes cargos nunca se iria procurar “comentadores profissionais de Wrestling” – se formos a ver, mesmo à escala mundial quantos existem? Por esse motivo, o casting ocorre geralmente por convite a pessoas do meio, onde mais tarde quem apresentar boas condições será convidado a comentar o programa.
Quem prefere ver Wrestling na sua versão original, tem (felizmente) nos dias que correm inúmeras soluções para tal. Mas, desta forma, o Wrestling chega a mais pessoas e com a voz de pessoas que de facto vivem esta modalidade, em vez de um comentador de futebol “adaptado”.
Apresentando a banda
Tive a felicidade (e honra) de ser comentador de Wrestling na SportTV durante cerca de 2 anos e meio. Comecei no Verão de 2009 (com o meu colega de guerra Hugo Santos) e dei voz a todos os programas TNA Impact e PPVs até ao final de Dezembro de 2011. Apesar da direcção criativa da TNA nem sempre ser a melhor, a experiência foi tremendamente gratificante a vários níveis e voltaria a fazer tudo outra vez. A programação continua assegurada pelos meus amigos David Batista e João “Pégaso” Sena, que certamente farão todos os esforços para enaltecer semanalmente o produto vindo de Orlando.
Antes de mim, estava já Jorge Botas a comentar a programação TNA desde Maio de 2008, passando 1 ano depois para a WWE juntamente com o General Manager do Wrestling Portugal, Bruno Almeida, que comentava TNA desde Março de 2009.
A dupla que comenta a WWE semanalmente na SportTV
A dupla anima a SportTV3 ainda nos dias de hoje, comentando semanalmente o Raw, o NXT, o Superstars e os PPVs – estes últimos em directo! Nos meus artigos é frequente referir a importância da repetição e sem dúvida que estes 2 senhores já levam muitas horas de comentários acumuladas entre eles. Quem melhor para convidar para este artigo?
Porque devo considerar uma visita à mesa de comentadores?
Provavelmente estarás neste momento a pensar que um lutador simplesmente luta, pelo que comentar não te servirá de nada. Nada mais errado – os senhores que estão na mesa de comentadores são os responsáveis por trazer toda a acção até ao ouvinte, seja pela televisão ou pela web. São eles que traduzirão aquilo que fazes numa linguagem bem mais acessível à audiência e aqueles que te promoverão como se fosses o lutador mais valioso da companhia.
A melhor forma de entenderes o trabalho deles é passando precisamente pelo mesmo. Se não souberes como os podes ajudar, como esperas chegar ao topo?
Da mesma forma que só saberás o que é dar uma queda num ringue de Wrestling quando visitares uma academia de Wrestling, terás maior noção da dificuldade deste trabalho se o experimentares – no WP vários foram os castings feitos para arranjar comentadores e todos os participantes reconheceram que o desafio é bem mais complicado do que esperavam.
Posto isto, vamos conhecer melhor esta profissão, para que saibas aquilo em que te estás a meter.
O trabalho de casa
Algo que podemos tirar já do caminho é a questão da preparação – há quem ache que os comentadores decoram tudo ou levam já todos os apontamentos e se limitam a recitar. Nada mais errado, como pode confirmar Jorge Botas:
Não faz o mínimo sentido ter as nossas falas escritas quando se faz algo em direto ou “live on tape”. Mesmo que já tivesse visto o evento antes, nunca em tempo algum iria escrever o que tinha que dizer, porque os programas/eventos vivem do “feeling” ao vivo/directo do momento e é complicado replicar uma emoção quando é escrita.
Isso não significa que não possa haver preparação – claro que deves acompanhar as storylines, conhecer algumas manobras e saber o que a companhia tenciona dar destaque em cada segmento. Para nos facilitar a vida, há um guião.
O guião
O guião são meia-dúzia de páginas (se tanto). Não te contará o evento em detalhe mas dará uma ajuda. O guião da TNA não é muito diferente do fornecido pela WWE e o mesmo acontece no caso do WP.
A 1ª página do script do último PPV da WWE
Eis o que a equipa da WWE recebe, segundo Bruno Almeida:
Para comentar, normalmente recebemos algumas informações por parte da promotora sobre a história que os Wrestlers estão envolvidos, bem como mensagens importantes (bullet points) a passar em comentário para os espectadores ao longo do combate.
Jorge Botas completa:
Nós apenas recebemos um guião com o alinhamento do evento – ordem dos combates, segmentos de bastidores – e não recebemos mais nenhuma info adicional, principalmente nos PPVs. Aí é o nosso trabalho de casa que tem de ser feito. A memória nem sempre dá para tudo.
No guião poderás ainda encontrar outros elementos, como a duração do combate, alguns aspectos que deves realçar (como o facto de um dos lutadores no ringue estar frequentemente a olhar para alguém fora dele, que lhe poderá causar uma distracção no final) e (por vezes) o vencedor.
Os golpes
Quando pensamos em comentar Wrestling, pensamos automaticamente em ter de saber os nomes de todos os golpes e mais alguns. No entanto, se olharmos para o panorama actual, verificamos que os tempos em que os comentadores se limitavam ao play-by-play estão bem distantes.
Comentadores como Joey Styles foram substituídos por uma geração mais preocupada com o que acontece no ringue ao nível da história. Isto só vem realçar a importância dos golpes e aquilo que refiro com frequência: os golpes são meras palavras e felizmente os comentadores estão lá para fazer a tradução.
Ser uma máquina que debita nomes de golpes ao microfone é um pouco como aquele lutador independente que sabe realizar todos os golpes mas não consegue contar uma história no ringue.
Jorge Botas reforça:
Uma das maiores criticas que ouvi foi: “Então, não sabes os nomes dos golpes?”. Para quem ainda vive numa caverna, nos dias de hoje, isso não é o mais importante. O objectivo é fazer brilhar o lutador e o que está a acontecer no ringue e não mostrar que somos os maiores e que andamos a estudar dicionários de wrestling. Eles são as estrelas, não somos nós.
Comentando a acção
Como diz Jorge Botas, ninguém nasce ensinado e há coisas que só se aprendem com o tempo e com a experiência. É natural, segundo a voz da Antena 3, que estejas nervoso – o que é impossível de resolver, mesmo ao fim de alguns anos. É um pouco como aquelas “borboletas” que sentes antes de um combate – muitos dizem (e eu concordo) que se as deixares de as sentir, mais vale seguires para a reforma.
O lutador facilitará (ou não) o teu trabalho na mesa
Nervos à parte, existem outros desafios que poderás enfrentar. Estes são directamente relacionados com a qualidade dos lutadores no ringue, como comprova Bruno Almeida:
Os maiores desafios que encontro prendem-se maioritariamente com situações onde os Wrestlers (normalmente os menos experientes) claramente não seguem em ringue a visão criativa que seguramente lhes foi passada previamente. Com isto, dou comigo a olhar para os bullet points sem encontrar a oportunidade desejada para os meter em comentário.
O General Manager do WP (e também actual treinador da academia) vai mais longe, destacando 2 tipos de lutador nos programas:
1 – o Wrestler de topo. Aquele onde dentro de ringue nos brinda com uma performance claramente orientada para o público e cujas ações permitem à equipa de comentadores vender o evento e a acção quase de olhos quase fechados.
Pelo facto deste Wrestler estar ciente de que a sua missão é e será sempre servir o fãs e alimentar os comentadores, não só segue religiosamente as indicações que recebeu nos bastidores, como mete o seu cunho pessoal em todo e qualquer combate, dando assim a possibilidade aos comentadores de também eles fazerem um trabalho bem melhor.
2 – o Wrestler que se esquece que existem fãs e câmaras e que tudo aquilo que faz em ringue deve ser feito para essas duas entidades.
A esses Wrestlers, estou convencido de que uma viagem até à mesa dos comentadores para comentarem os seus próprios combates lhes faria bem, para compreenderem de forma simples como podiam ter sido bem melhores. Por vezes, basta pensar um pouco em maneirismos e atitudes únicas (ou até num equipamento mais original), que contribua positivamente para o aspecto do lutador, para se tornar instantaneamente mais “comentável”.
Korvo sugere ainda um bom exercício para qualquer aspirante a lutador:
Um bom treino poderá ser retirar o som de um combate (mediano/mau) e tentar comentá-lo, pensando: o que podia fazer o Wrestler neste momento para me ajudar a vender melhor a acção e a sua personagem?
Os acidentes
Seja na mesa de comentadores, seja no ringue, vão haver erros. No ringue tudo pode acontecer e a única coisa que podemos esperar é que não surjam lesões. Na mesa de comentadores, se o programa for em diferido poderás voltar atrás as vezes que quiseres se for realmente necessário, no limite do razoável (convém ter respeito pelo tempo dos restantes colegas, seja os da mesa ou os do estúdio) – se leste o artigo da semana passada, saberás que a perfeição chegará mais tarde, com a repetição. Em directo, tal como num combate, só tens 1 take e terás de disfarçar um eventual acidente o melhor que conseguires.
Jorge Botas aconselha: nunca fazer referência a qualquer falhanço
Nesta situação, Jorge Botas tem uma dica preciosa:
Há algo muito importante nos comentários, que foi algo que aprendi em rádio, que é nunca deixar cair alguém. Ou seja, num caso de um golpe de um lutador sair mais ao lado, nunca fazer referência ao falhanço, NUNCA! Percebo que às vezes seja difícil, mas é algo que nunca deve acontecer. E quando se trabalha em equipa, é algo que também temos de fazer… se alguém se enganar, há formas subtis de corrigir esse erro sem dar nas vistas. Percebo que para algumas pessoas isso possa ser complicado, mas não podemos comprometer o nosso trabalho… porque se o fizermos, fica mal o nosso trabalho, o canal, e obviamente desilude quem está a ver em casa.
A identidade
Um bom comentador terá a capacidade de falar da acção, transmitir todos os pontos críticos que a empresa (e os lutadores) pretendem de cada segmento e ainda assim, conseguir deixar a sua marca pessoal. Com a repetição, poderás ficar bastante decente neste trabalho e quem sabe se não se abrirá uma carreira depois de arrumares as botas!
Também aqui o administrador do Impacto Global deixa um conselho:
Sejam vocês próprios. Nada pior do que nos fazermos passar porque alguém que não somos, e isso nota-se de imediato, assim que o microfone é aberto.
É caso para utilizar aquela famosa frase de Oscar Wilde: Be yourself, everyone else is already taken.
Conclusão
Existem muitos desafios para um comentador, mas se passares por esta experiência terás maior facilidade em tornar os teus combates acessíveis para qualquer audiência (e qualquer equipa de comentários).
Dada a proximidade desta gente aos fãs, é inegável que deves não só respeitar o trabalho deles como conhecê-lo a fundo, para melhor perceberes como a tua mensagem pode chegar a cada pessoa que assiste ao teu trabalho em casa.
Um abraço e até para a semana! Qualquer coisa, já sabem que aguardo os vossos comentários, mensagens e tweets.
15 Comentários
Para ser sincero, nunca gostei muito do trabalho feito pelos comentadores na SporTV, sempre os achei um bocado “secos”, acho que não me transmitem muita emoção.
Claro que com isto não os quero mandar abaixo, bom artigo.
Obrigado por leres e pelo feedback – falando por mim, é realmente um trabalho difícil e que tem muito que se lhe diga, mas nada como a repetição para melhorar! 🙂
Great stuff 🙂
Eu pessoalmente não gosto de ver com os comentários em português mas acho que não é razão para as críticas que por vezes vejo sobre o seu trabalho, porque acaba por ser bastante difícil e não é um cromo que pensa que por saber o nome dos 17 finishers dum gajo do Japão que pode e consegue comentar um show de wrestling.
Há outra coisa que me faz comichão que é: se o Wrestling em termos de visibilidade não está propriamente desenvolvido em Portugal (em termos de talento e de organização é excelente) acho que o facto da Sport TV ter o monopólio do wrestling, em termos de transmissões, não estará a dificultar a visibilidade do mesmo? Visto que nem todas as pessoas têm a possibilidade de ter a Sport TV, não ajuda à visualização do Wrestling. Para mim é indiferente porque com streams, DesiRulez, etc. há uma certa facilidade em vermos os shows, mas para os mais novos que querem entrar no wrestling é difícil e eu tive sorte de estar presente no “Boom” do wrestling em Portugal, entre 04′ 07′ essa época marcou-me e não terá a possibilidade de marcar as novas gerações.
Boa sorte para o próximo 🙂
Eu tbm acho o mesmo, alias ja tive a comentar com colegas meus sobre isso e senao fosse essa epoca entre 04-08 eles secalhar nunca teriam visto Wrestling.
Pessoalmente eu tenho SPTV e até aprecio bastante a dupla de comentadores embora veja sempre os shows aqui na Stream, mas globalmente gosto dos comentarios , e eles vao sendo melhores ou piores consoante estes topicos que foram tratados pelo “Bammer”
Concordo que o Wrestling chegaria a uma audiência maior se não estivesse num canal fechado. Mas, infelizmente, a popularidade já não é a mesma e provavelmente já não compensava para esses canais apostarem nos programas. Ao menos ainda há qualquer coisa em Português, o que garante alguma exposição da marca em Portugal.
Mas é como dizes, ao menos há opções! 🙂
É assim, quando uma pessoa se habitua a uma coisa é dificil de alterar o hábito, e temos o exemplo dos comentários portugueses na SportTV, estamos todos habituados ao Michael Cole (etc) e quando apanhamos algo diferente como os da SportTv achamos estranho, não mau :s
Mas de resto, bom trabalho, tens vindo a evoluir a cada artigo que escreves e esta rúbrica tem sido um sucesso, continua 🙂
Obrigado por leres! Realmente ouvir numa língua diferente do inglês é estranho, mas com o tempo vai lá. Por exemplo, nos tempos da WCW na DSF (canal alemão) demorei muito tempo a aceitar, mas passado um tempo até era divertido 😉
sim, depois acabamos por nos habituar 🙂
Gostei do artigo! Os comentários em português são sempre um handicap para a transmissão, mas se continuares a ouvir sempre em português começam a entranhar-se e começa a ser normal. O PPV Elimination Chamber vi todo em Português na sport Tv e, foi muito bem trabalhado pelos comentadores. Se vocês fossem do tempo(tal como eu) do grande tarzan então ….
Obrigado por leres! Eu nos tempos da RTP tinha de ver os programas sem som… se os vir agora até tem alguma graça, mas realmente como referes, “we’ve come a long way” no que toca aos comentários 🙂
Ja agora uma pergunta pessoal se for possivel responder :
Tas fora de Portugal por causa do wrestling ?´
E onde o Wrestling te vai levar ?
Nah, estou fora pelos mesmos motivos de tantos outros da minha geração: melhores condições de vida.
Onde me vai levar, neste momento não te sei responder… no ringue, sem ser matar saudades na academia do WP sempre que vá a PT, não tenho grandes planos, mas estou longe de me considerar “reformado”! 😉
Excelente artigo!
Eu não gosto muito de comentários em português mas acho que vocês fazem um bom trabalho,mas acho que o David Francisco é o melhr comentador Português
Obrigado por leres e pelas palavras – relativamente ao David, estou totalmente de acordo! 😉
Sao os melhores comentadores de portugal