Boas a todos nesta grande casa que é o Wrestling PT!

Há coisa de um mês, foi noticiado que a WWE iria vender os direitos de transmissão do seu conteúdo que constitui a WWE Network à Peacock, passando este a ser o serviço de streaming ao qual os norte-americanos teriam de aceder caso estivessem interessados em ver mensalmente o PPV da WWE, os inúmeros documentários e entrevistas e, talvez principalmente e para aquilo que a WWE Network sempre disse mais aos fãs que a assinavam, o conteúdo do passado. Não obstante, a Peacock, para já, irá operar apenas nos EUA, pelo que nos restantes países, é a WWE Network que continua a ser a plataforma onde os fãs encontram esse conteúdo. Foi, sem dúvida, um negócio que gerou bastante lucro à WWE, e que pode ser o primeiro passo num futuro em que, com Vince McMahon fora de cena, ou mesmo ainda com ele, a WWE acabe por ser vendida a uma grande plataforma de streaming, ou a uma grande empresa que detém direitos sobre grandes universos de espetáculo, tais como a Disney, apenas a título de exemplo. Pessoalmente, não me admiraria um segundo que fosse se tal viesse a acontecer no futuro e, mais do que isso, que tal viesse a acontecer até mais brevemente do que estamos à espera.

No entanto, este não é um artigo onde tento vislumbrar esse futuro, ou melhor, de como ele acontecerá ou que passos podem ou irão ser dados até aí. Se essa megaempresa pega na WWE do Vince, na WWE da Stephanie e do Triple, na WWE do Shane, se essa megaempresa terá no comando da WWE o Triple, se terá no comando o Shane, se terá no comando outra personalidade influente e credível no mundo do wrestling, se terá alguém que será um profundo desconhecido da área, mas fã de longa data, se terá alguém que não é conhecido na nossa modalidade, nem que é dela fã e quer executar uma visão para o wrestling do futuro totalmente diferente da que tínhamos no passado e temos no presentes, etc. Todas estas questões, porventura muito interessantes e que vão fazer correr muita água debaixo do capote nas próximas décadas não são, no entanto, objeto deste artigo, até porque qualquer previsão que tentasse fazer seria profundamente errática, porque mais tarde ou mais cedo a realidade iria desmenti-la.

O que eu quero realmente falar no Brain Buster esta semana foi das notícias que a Peacock pretende eliminar ou apagar todo o conteúdo alegadamente racista que faz parte da história da WWE, isso sim interessa-me verdadeiramente, porque isso sim é uma questão atual e que devemos discutir desde já, e é uma questão que tem levado a um caminho de tratamento que pessoalmente vejo a ser perigoso e a tomar grande conflitualidade, ao passo que em nada resolve os problemas que, infelizmente, continuam a assolar as comunidades de pessoas nos nossos dias, como é o caso do racismo.

Brain Buster #102 – Aceitar o passado, aprender com ele

Um dos segmentos, promos, rivalidades ou combates que aparentemente foram apagados foi a promo de Roddy Piper antes do seu combate com Bad News Brown, em que o Piper pintou metade do seu corpo de negro. Ora, as situações, atos, comportamentos, condutas, frases, declarações ou palavras que à primeira vista nos parecem desapropriadas e até mesmo insultuosas necessitam de um contexto para que possam ser realmente compreendidas e até o contrário, para que possam realmente ser ser consideradas como condenáveis, porque consubstanciaram comportamentos que não devem ser ignorados à luz dos nossos olhos. Ora, esta situação, assim como todas, também necessita desse contexto. Nessa promo, temos o Piper a dizer exatamente que a cor das pessoas não importa para nada, que toda a gente é igualmente capaz, e que ele nunca deixou de tratar alguém de forma favorável ou desfavorável pela cor da pele da outra pessoa ser diferente.

E é certo que tomou um comportamento que podia ser mal entendido e interpretado e, por isso, não o mais acertado para a mensagem que queria transmitir. Podemos dizer que o fez de forma trapalhona, superficial e um pouco ignorante, porque não podemos ignorar, mais uma vez, a história e o contexto, desta vez, de como surgiu o “blackface”, e o mesmo surgiu numa sociedade completamente divida e que deixava claramente pessoas negras para trás, infelizmente, discriminando-as e não as deixando aceder aos mesmos ligares, cargos, empregos ou posições que as pessoas brancas. Ora, as pessoas brancas, as únicas que tinham oportunidade de fazer teatro ou cinema, quando interpretavam personagens que, na cabeça do autor, eram negras, pintavam o seu corpo com uma cor escura. Neste sentido, compreendo perfeitamente a posição de todos os que não se reveem nesta prática, e que se sentem ofendidos ao ver alguém fazê-lo, porventura de forma ignorante e desconhecera, mas que continua a ser um comportamento que ofende várias pessoas, pelas vivências pessoais e histórias comunitárias que, infelizmente, tiveram de vivenciar.

Mas o passado é passado e a história não se rescreve, factos não devem ser alterados e, muito menos, devem ser apagados das memórias ou não contados às presentes e futuras gerações. A única forma de evitarmos cometer os mesmos erros do passado, não é fingir que ele não aconteceu, é relembrá-lo em todas as situações e tirar ilações para o presente e futuro, é identificar semelhanças e combatê-las, é perceber evoluções políticas e sociais, e todos, enquanto comunidade tolerante, inclusiva e que aceita a diversidade, tomar uma posição de fundo sobre a história, sobre aquilo que nos une e aquilo que deve ser combatido, porque se é verdade que a história não se reescreve, ainda mais verdade é que o entendimento que o ser humano tem dela muda consoante as conceções políticas e sociais da sua época.

Por isso, se é verdade que as estátuas de personalidades do passado colonial, por exemplo, podem ofender alguém, e, por isso, seguindo os processos democráticos, se a comunidade o entender, devem ser retiradas, também não é menos verdade que o colonialismo existiu, e não tem de ser apagado da memória, pelo contrário, tem de ser lembrado e discutido, claramente que condenado, mas não apagado da história. Mais uma vez, factos são factos, mas a maneira com que olhamos para eles pode ser diferente. No passado tivemos discriminações religiosas, socioeconómicas, de género, raciais e étnicas, sim, elas existiram e nunca podemos esquecer que existiram, e a prova disso é que ainda hoje continuam a existir! Mas essas discriminações não desaparecem se ignorarmos o passado e fingirmos que ele não existiu. Ele existiu! E é com ele que temos de aprender.

Brain Buster #102 – Aceitar o passado, aprender com ele

E esta ideia é aplicada ao wrestling de forma peculiar, porque o wrestling cria uma realidade de ficção que, no entanto, se pretende o mais credível possível, a mais próxima da realidade que se conseguir, mais até do que uma ficção que se insere no mundo real, o wrestling é um mundo real que se insere na ficção. Não pretende ser o contraste da realidade, nem um seu semelhante, ou uma realidade própria, o wrestling pretende ser parte da realidade, e não estar fora dela. E esta era a ideia que se tinha principalmente no passado, o kayfabe era religião, o que nos parece um tempo longínquo olhando para a forma como as pessoas tratam o wrestling hoje em dia, as pessoas de dentro e fora dele. Se ao contrário de hoje se aceita que o wrestling é uma ficção, um filme em modo real, uma série que acontece perante os olhos das pessoas e não através do ecrã, as coisas passavam-se de forma muito, muito diferente no passado.

Claro que tínhamos os vilões de leste comunistas, claro que tínhamos vilões racistas e machistas, claro que tínhamos mulheres que não se valorizavam numa sociedade que as fazia acreditar que eram um género inferior e, no limite mais externo, como um mero objeto sexual. E sabem porque é que os tínhamos? Porque eles existiam na realidade, e num mundo que se pretende o mais próximo da realidade, a interpretação de gimmicks, personalidades, palavas e condutas não devia apenas bater certo com a realidade, elas deviam fazer parte dela. E poucas são as pessoas que fora do wrestling vão perceber esta ideia, e é por isso que é tão, mas tão perigoso o wrestling passar a ser feito e controlado por pessoas que não o entendem, que não conhecem o seu passado, os seus fãs, as pessoas que o construíram ao longo de décadas e décadas, a evolução da modalidade e a sua forma de o apresentar, etc.

E mesmo já numa altura em que se admitia que o wrestling era uma modalidade em que os resultados e rivalidades eram pré-determinadas, continuamos a ter vilões de leste que odiavam os EUA, vilões machistas e mulheres que não se valorizam a si mesmas, etc., porque eles não deixaram de fazer parte da realidade de um dia para o outro. Cada vez mais condenados que as pessoas sejam vistas dessa forma estereotipada e superficial, e o caminho que se tem feito é positivo, mas ele não se fez de forma automática, de um momento para o outro e, infelizmente, não se irá fazer, pois o mentalidades como o racismo ou o machismo são mais do que simples atos discriminatórios isolados, são algo impregnado de forma estrutural na sociedade, que levam década e décadas a desaparecer.

Se formos alargar o objetivo da Peacock de eliminar da história da WWE todo o conteúdo que, a luz dos dias de hoje podemos considerar como racista ao machista, a título de exemplo, os finais dos anos 90 não existem praticamente, mais, metade da carreira da lutadora que até bem recentemente foi considerada como a melhor da história da empresa, a Trish Stratus não existe. O pior erro da nossa comunidade atualmente é olhar para o passado com os olhos do presente, é não tentar perceber porque se pensava daquela forma naquela altura e porque se agia assim, é atribuir às gentes do passado o título de selvagens, quando estes “selvagens” não tinham a capacidade crítica de pensamento, a educação e formação, a qualidade de vida, entre muitos outros fatores que nós, felizmente, temos hoje. Pessoas do passado seriam, indiscutivelmente, pessoas diferentes no presente.

Brain Buster #102 – Aceitar o passado, aprender com ele

E vamos agora até para o lado profissional desta questão. Tal como em todas as temáticas e matérias, há pessoas mais habilitadas a falar sobre o assunto do que outras. Desde logo, quem é que os funcionários tecnocratas e pouco conhecedores destes temas, não só do wrestling, mas também do racismo são, para determinar o que é racismo e não é, em cada situação? Segundo, gostaria de ter conhecimento acerca de que teoria sociológica e antropológica vão usar para fazer essas distinção nas várias situações, e se vão ter uma equipa de pessoas que dedicaram grande parte da sua vida a estudar estes temas a aconselhá-los nesse sentido, ou se vão apenas decidir nas várias decisões conforme a sua disposição de manhã ou depois do almoço, se vão usar precedentes em casos análogos e, em tom mais jocoso, se o vão fazer simplesmente a “olhómetro”.

E isto sem nunca esquecer outra particularidade do mundo do pro-wrestling, é que ele não é feito todo da mesma forma, ele é feito, quase sempre, tendo em conta o país, a região, a cidade, o tipo de público presente na arena, entre muitos outros fatores. Eliminar a feud Roddy Piper vs. Bad News Brown não parece que se deva nem possa ser feito nas mesmas condições em que se analise a personagem do New Jack e dos Gangstas na ECW, porque mesmo ambas pegando no tema das questões racionais, foram feitas de forma diferente, para públicos diferentes, com alvos diferente, com pessoas diferentes, etc. Mesmo admitindo que se deveria considerar a ideia de apagar conteúdo da história da WWE, não faço ideia como se iria estabelecer um critério seguro e igual, que fosse tremendamente infalível a solucionar estas questões. Bem, também se podia adotar o critério de em caso de dúvida se apagar…

Em suma, sim, no seu passado a WWE tem inúmeras histórias e rivalidades que não seriam aceitáveis de apresentar atualmente, principalmente porque não só as conceções e as estruturas sociais mudaram, como a forma como as pessoas olham para o wrestling também mudou, mas isso não eram fatores aquando do tempo em que essas histórias aconteceram. O passado existe e está lá, e não devemos fingir que ele não aconteceu, devemos olhar para ele, discuti-lo e compreendê-lo de forma a não cometer os mesmos erros, saber que temos de fazer diferente, e, até, sensibilizados para estas questões como estamos atualmente, usar o wrestling na medida do possível como plataforma para promover o combate pelo fim dessas desigualdades, porque lá está, o contexto e a realidade em que vivemos são diferentes. A melhor forma de ultrapassarmos as diferenças é desconstruindo discursos racistas, xenófobos, etc., é informarmo-nos e aprendermos e desaprendendo conceitos incutidos no processo de socialização que não nos fazem mais sentido.

Hoje ficamos por aqui.

Até para a semana e obrigado pela leitura.

11 Comentários

  1. The 9plus14 anos

    Concordo a 1000%

  2. Sr k4 anos

    Artigo integro e de respeito.

  3. Sandrojr4 anos

    Concordo com oque você escreveu, na minha visão a WWE fazendo isso está vendendo o seu passado por dinheiro e não se importando com os danos que esse isso pode causar, ótimo artigo.

  4. Concordo em parte com o que escreveste. Tentar “apagar a história” é meio caminho andado para no futuro se cometerem os mesmos erros do passado. Pessoalmente preferia que o conteúdo se mantivesse igual ao original (exceto algum segmento realmente grave), mas com um disclaimer qualquer no início do conteúdo. Mas eu tenho 30 anos e já vi o conteúdo original do passado e vejo o do presente.

    No entanto, o problema talvez seja que jovens (ou mesmo crianças) de hoje que vejam os conteúdos do passado e que isso os influencie na forma como pensam no presente, e nesse caso, eliminar o passado acaba por evitar que esses jovens (que não conheciam, conhecem ou conhecerão o conteúdo original) seja influenciados pelo mesmo.

    Para um jovem adulto ou adulto isto não é muito preocupante. Mas imagina uma criança que vê algo que nos 80-90 era “aceite” e leva essa ideia para a escola, etc, também estarão a criar problemas sem necessidade. Ainda para mais numa era em que tudo tem de ser PG e politicamente correto.

    Quem já conhece, há o trabalho de reeducar. Quem não conhece, pode-se evitar.

    • Obrigado pelo comentário Salvador. Acho que já há maneiras de evitar que conteúdo que influencie negativamente as crianças, nomeadamente o aviso de TV para crianças acima de certa idade, ou mesmo um disclaimer no início do vídeo como sugeriste, e aí será sempre responsabilidade dos pais em deixar as crianças ver, e não propriamente algo que as TVs ou plataformas de streaming se devam preocupar.

      No entanto, se pensarmos bem, quem irá pesquisar conteúdo do género não serão certamente as crianças que gostem de ver WWE atualmente com os pais, serão sim adolescentes e adultos que queiram ver conteúdo do passado, adolescentes que, com a devida educação e processo de socialização capaz serão capazes de perceber o que é certo e o que é errado.

      Mas percebo perfeitamente a tua opinião, não propriamente de censurar por censurar, principalmente para as pessoas sobre as quais tal conteúdo não tenha nenhuma influência, mas aqueles que ainda não têm consciência suficiente para ter esta conversa que nós dois estamos a ter neste momento. Foi um bom ponto que trouxeste para a discussão, e o qual, sinceramente, até acabei por não me lembrar ahahah.

    • Têm de se preocupar. Apesar de não pesquisarem, uma criança pode entrar num vídeo do Roman Reigns e aparecer um do Rowdy Piper nos sugeridos ou algo do género. Já por vezes apanhei “desenhos animados” no tablet do meu filho que não recomendo a nenhuma criança da sua idade ver. Simplesmente vão aparecendo. Não dá para controlar, e os pais não podem ser polícias 24/7 do que os filhos fazem ou vêem, ainda para mais na época em que vivemos. Ainda para mais, se uma empresa quer ser PG e “politicamente correta” para chegar a um maior número de pessoas, não há alternativa se não “cortar” e evitar que o conteúdo não-PG antigo se espalhe ou seja apresentado no meio do restante. É um trade off. Talvez seja um corte incompreensível para os fãs mais antigos ou adultos, mas necessário no fim do dia.

  5. Muito bem, eu concordo!