Boas a todos nesta grande casa que é o Wrestling PT!

Quando a WCW foi colocada fora de televisão e foi comprada pela WWE em 2001, perdeu-se mais do que uma promotora, perderam-se muitas outras coisas: perdeu-se o southern style de wrestling de vez, embora a WCW em 2000 já pouco ou nada fosse fiel a esse estilo, mas se perdeu também, e talvez principalmente, uma promotora que fosse capaz de pelo menos fazer frente à WWE e a Vince McMahon, que pelo menos o obrigasse a ter de conquistar os fãs de wrestling que havia na altura, assim como potenciais novos fãs. Perdeu-se a pressão que se fazia no topo do wrestling para que as promotoras do topo da modalidade fizessem de tudo para que o seu programa fosse o melhor possível. Mas perdeu-se também uma outra forma de trabalhar, mais inclusiva e global, que legitimasse wrestling diferente e do bom, mesmo que por si não fosse praticado, que formasse acordos e parcerias, e, acima de tudo, que fosse gerido por pessoas que gostavam de wrestling e que o queriam proteger, e não fazer apenas coisas para chamar a atenção em relação ao outro programa, embora, volto a dizer, a WCW no final dos seus dias já tinha pouco disso, mas com o seu fim acabou-se definitivamente esta possibilidade.

A verdade é que as Monday Night Wars, em certos aspetos, foram o principal causador de vários danos que se fizeram ao wrestling e à sua imagem. Apesar da sua popularidade nos anos 90, o que é certo é que principalmente nos finais desta década as pessoas quando ligavam a TV às segundas e viam o RAW ou o Nitro, quase nunca era para ver wrestling. O tempo dos seus combates e promos era agora ocupado por segmentos eróticos e tentativas de comédia, e tudo para chamar a atenção do público. A WWE, quando estava a perder as audiências, foi a primeira a ir por esse caminho, e a WCW, quando se viu também em tal situação acabou por tomá-lo também. Mas em especial, a WCW desfigurou completamente o seu estilo, principalmente de meados dos anos 90, que já se afastava sim do estilo que a fundou, daquele estilo do wrestling sulista muito pouco “cartonizado” face ao estilo da WWE, mas que continuava a ter as promos, os combates e as histórias credíveis e legítimas que não criavam um embaraço em que quem via e gostava de wrestling. Este foi o estilo, e porventura talvez o único até hoje que conseguiu rivalizar com Vince McMahon, e foi exatamente no momento em que a WCW se tornou naquilo que costumava odiar, numa cópia do wrestling “cartonizado” da WWE que começou a perder o seu público e, como tal, foi a partir daí que o seu fim começou a dar-se.

Brain Buster #110 – Importância de uma AEW forte

Ora, 20 anos passados, e depois de várias tentativas de recuperar isso, a maioria delas falhadas por razões ridículas na TNA, que também acabaram por levar ao seu declínio, poderia parecer que a WWE reinaria sozinha no topo do mundo do wrestling, principalmente nos EUA. Mas esse pensamento está errado, essa previsão não bateu certo e isso só é possível porque tivemos, entretanto, a emergência da AEW. Muitas vezes sou acusado de criticar excessiva ou indevidamente a AEW, mas nunca leram aqui que considero a AEW um mau produto, tendo desejado e referenciado várias vezes que o wrestling precisa da AEW, precisa do seu sucesso, precisa que a mesma se fortaleça e seja figura central do wrestling do seu tempo. Sim, estou longe de achar que é um produto perfeito, tem algumas falhas de produção nalguns shows, tenta fazer demasiada coisa com 2 horas de Dynamite, tem combates muitas vezes sem sentido e que se limitam a ser spotfests, tem na sua programação combates porventura muito longos, utiliza vários estilos que não apelam ao fã de wrestling comum e que não interessam ao fã casual da modalidade. A AEW tem de facto, aspetos em que penso que poderia melhorar, mas confesso que em alguns deles tratam-se apenas de algo que se relaciona bastante com o meu gosto pessoal e de um estilo que nunca mais irá voltar, porque se eu acho que a AEW perspetiva o wrestling para o futuro imediato e a longo prazo praticamente da melhor maneira possível? Sim, acho. E direi porquê ao longo deste artigo, encontrando várias razões para tal.

Muita gente tende a comparar a AEW à WCW e alguns fãs da primeira parecem levar isso como insulto. Pessoalmente, acho que dependerá de que WCW estamos a falar. Quando há brawls infindáveis no programa, angles em todos os segmentos e entrevistas, combates que começam sempre antes da campainha tocar e momentos pós-match em vários pontos do show, sim, isso era um dos problemas da WCW nos finais dos anos 90. Mas sabem o que difere a AEW da WCW nesse aspeto? É que raramente isso não é feito com um propósito futuro, e nunca começa sem que psicologicamente deixe de fazer o mínimo de sentido. Mas esquecem-se os fãs que a WCW não foi sempre assim. Se me perguntarem, por outros ângulos, acho que a AEW herdou os aspetos mais positivos da WCW, obviamente que na reserva do possível. É uma promotora que não vive sozinha e faz várias parcerias ao longo do globo, dá a conhecer novas realidade, novos estilos, novas culturas de wrestling. Em dois anos de existência, já vimos o estilo mais old-school da NWA, já vimos o Strong Style da NJPW, já vimos alguma comédia da que se pratica na DDT e, como se ainda não bastasse, foi a AEW a primeira major company de wrestling nos EUA que introduziu os fãs americanos ao joshi. É verdade que nem sempre da melhor maneira, mas a AEW parece conhecer o fã de wrestling atual, não propriamente o fã mais casual, mas o fã atento ao wrestling ainda em 2021.

Tal como a WCW fazia várias parceiras, sendo a porta de entrada de lutadores enormes do Japão nos EUA, tais como Great Muta, Tatsumi Fujinami, Último Dragon, Jushin Thunder Liger, entre outros, a AEW especializou-se bastante nesse aspeto, e a meu ver bem. Porquê? Porque não há nenhuma empresa de wrestling que não tenha a sua base fiel e leal, e não há nenhuma empresa de wrestling que possa simplesmente a todo o momento achar que a tem por garantida e começar a toda a hora a agradar a outro tipo de fãs, basta ler o que já escrevi neste artigo sobre a forma como a WCW caiu. Ora, o fã de base da AEW é um fã atento, poder-se-á dizer mesmo um fã hardcore, que tem o wrestling como parte importante da sua vida, tentando ver e conhecer o máximo acerca da modalidade. A AEW tem estes fãs agarrados ao seu produto, e a mesma entende o que os mesmos querem ver de si. Sim, por vezes vai mais longe do que o que devia, e descura muito o facto de tentar ter outros fãs para além desses, mas tem uma audiência fiel, e percebe essa audiência como ninguém.

E é essa uma das razões pelas quais acho tão importante a existência da AEW. A WWE à muito tempo que já deixou de ouvir os seus fãs, de ter um projeto, um programa de futuro, etc., a WWE não tem nada, e tem completamente em perspetiva uma ideia de futuro que dificilmente passará por wrestling. Ter um programa de roleta russa em que o que acontecer aconteceu e amanhã se for preciso esquece-se do que aconteceu, em todas as entrevistas mencionar a palavra “charater” e “performance”, valorizar momentos de autopromoção do que momentos que tornem o produto interessante, colocar lutadores em causas sociais, em aparências televisivas constantemente, falar para os fãs sempre com frases moralistas e de identificação das pessoas com as suas personagens (e não lutadores) da sua televisão. A WWE ignora completamente o kayface, dentro e fora dos seus eventos.

Brain Buster #110 – Importância de uma AEW forte

Por outro lado, a WWE procura cada vez mais segmentos que se parecerem com uma série de televisão do que promos e combates que se adequam a um show de wrestling, faz cada vez mais combates cinematográficos, e mesmo os que não são, limitam-se a ser um showdown em que os lutadores estão claramente a cooperar entre si ou em que se praticam coisas tão absurdas como lutadores serem queimados vivos, estarem a sair líquidos da sua testa, espumarem tinta preta, entre outras coisas ridículas que só de ver me fazem odiar-me a mim próprio por estar a ver aquilo. É por isso que sempre que algo é cinematográfico ou tem algo sobrenatural eu escolho não ver e vejo as pequenas e boas exceções em que ainda vamos ter um bocadinho de wrestling nos PPVs da WWE. Acredito que num futuro mais próximo do que o que possamos estar a almejar, a WWE acabe por ser vendida a uma grande empresa como a Disney, vendida exatamente pelos oficiais da WWE como algo com base de wrestling, mas que já não mais se adequa chamar-lhe como tal. Para os seus “writers”, o wrestling é coisa do passado, por isso não vejo porque uma grande empresa que a venha a adquirir no futuro faça coisa ainda piores, porque não percebe a modalidade, não percebe as suas rotinas, o seu vocabulário, os seus praticantes, as suas históricas, rivalidades ou lutadores. Simplesmente, a médio-longo prazo, a WWE estará condenada a ter um formato ainda mais de série, e a distanciar-se cada vez mais do wrestling.

A AEW, pelo contrário, sim, já praticou coisas que para mim são indesculpáveis como o teleporte do Matt Hardy, mas até agora foi uma coisa isolada e que parece não se voltar a repetir (pelo menos deixem-me ter esperança). E sim, a AEW já fez cinematches horríveis, mesmo sem poderes sobrenaturais. Como fã de wrestling mais conservador tenho medo que o wrestling se torne nisso e só nisso, como parece que seja o que a WWE se tornará no futuro, e se a AEW tem um estilo que não é o meu pessoalmente preferido, pelo menos é mais fiel à base do ringue e mesmo que por vezes os combates acabem pir ir muito mais além do que acho necessário, continuam a fazer parte de algo em que se pode continuar a chamar de wrestling. E isto porque a AEW, ao contrário da WWE, é comandada por pessoas que gostam de wrestling, e isso é uma grande diferença.

Claro que como fã, pessoalmente, gostaria que a AEW fosse diferente nalguns aspetos, aliás, quando a AEW começou eu tinha uma outra ideia para ela. Mas fãs de wrestling como eu porventura já existirão poucos, já poucos convencer-se-ão apenas como uma simples história de heel vs. babyface e de matches simples em que o selling é a coisa mais importante. E o argumento de que o wrestling anteriormente era maior draw porque era diferente? Bem, não acho que seja exatamente assim um argumento tão clarinho. O wrestling perdeu fãs? Sim, perdeu. O wrestling perdeu fãs por aquilo em que se tornou? Sim, mas não foi essa a principal razão para o wrestling ter perdido imensa popularidade, o wrestling perdeu popularidade pelas mesmas razões que a televisão em geral perdeu popularidade, que o teatro, a música, o desporto, etc. E perdeu porque as pessoas são diferentes do que eram, há uma clara dificuldade de concentração em fazerem o que estão a fazer durante muito tempo sem terem a tentação de ir para o Twitter ou fazer scroll no Instagram durante horas a fio.

Brain Buster #110 – Importância de uma AEW forte

A grande consequência disto foi que as várias modalidades do desporto e outros espetáculos culturais vissem o seu número de fãs reduzido. Mas sabem que fãs sobraram? Os fãs leais, conhecedores e atentos, que querem saber e ver ao máximo a modalidade ou espetáculo que estão a ver. E que fãs eu disse que constituem a audiência base da AEW? Exatamente! Sim, eu pessoalmente adoraria que o wrestling retrocedesse um bocadinho em certos aspetos, acho até que isso beneficiaria não só a promotora e o seu produto, como até o bem-estar dos próprios lutadores. Agora acho que não é essa a principal razão de o wrestling não crescer, ou não crescer tanto como em tempos cresceu. E por isso, esta fanbase hardcore de wrestling atual tende a não se contentar com aquilo que a mim pessoalmente já me chega. Sim, quer mais ação no ringue, quer showdowns incríveis que parecem saídos de videojogos, quer ver algo que vá mais além do que aquilo que já viu/conhece. Esta é e será sempre a evolução natural do wrestling, mas pessoalmente, apesar de não gostar propriamente de nenhuma das evoluções que tentei comparar, tanto da WWE, como da AEW, revejo-me mais na da AEW, ao menos é comandada por fãs de wrestling, feita por fãs wrestling e feita para fãs de wrestling, mesmo que com gostos diferentes do que os que tinham em 1989.

Posto isto, e para concluir, a importância de uma AEW forte não se reflete apenas nas questões tradicionais que se tentam trazer à colação hoje em dia, como o bem que faz a concorrência ao melhoramento de um produto. É importante a existência de uma AEW forte, porque traz um estilo de parcerias e divulgação de estilos e culturas para o wrestling main-stream, mas principalmente é importante porque sem ela estaríamos entregues ao que a WWE, Vince McMahon ou qualquer que seja a empresa que a viesse a adquirir entendessem que deva ser a próxima tendência ou evolução do wrestling. Felizmente não é assim, e felizmente não será por muito tempo.

Hoje ficamos por aqui.

Até para a semana e obrigado pela leitura.

8 Comentários

  1. Vitor Oliveira3 anos

    Belo artigo. Por curiosidade o que joshi que aew introduziu?? Não sei o que é kkkkk

  2. Ulisses Pereira3 anos

    Bom artigo sem duvida, explica exactamente o q se passa com as enpresas de wrestling actualmente

  3. Sandrojr3 anos

    Concorrência é sempre bom, quanto mais empresa grandes de wrestling melhor, e a AEW está provando isso, ótimo artigo

  4. Et Billu3 anos

    Excelente artigo, eu tenho uma sugestão de artigo, explicar e exemplificar os estilos de wrestling, agregaria bastante a quem lê os seus artigos.