Boas a todos nesta grande casa que é o Wrestling PT!
Na primeira semana em que vivemos num mundo e numa Europa pós-Brexit, irei hoje debruçar-me sobre wrestling britânico, mais precisamente sobre a questão que divide a comunidade acerca da WWE, o NXT UK e o Triple H estarem, ou não, a matarem o wrestling do Reino Unido, ou pelo menos, a abrandarem o seu crescimento.
Curiosa história tem o wrestling europeu, mas em especial o britânico. Na verdade, em todo o espaço europeu sempre foi o único país que conseguiu erguer o seu wrestling a pontos de importância só vistos nos maiores centros desta modalidade no mundo (Estados Unidos da América, México e Japão). Sem dúvida que o Reino Unido é o grande polo de concentração de todo o wrestling europeu, só perdendo nas últimas décadas para um bom crescimento da wXw na Alemanha.
E ao longo da sua história em que é se traduziram esses pontos de importância? Bem, nos mais tradicionais quanto ao que possamos pensar relativamente à modalidade, designadamente em públicos bem constituídos, na qualidade para formar bons e muitos lutadores, a capacidade para atrair os jovens, ou simplesmente novos aspirantes e, por fim, o interesse que o wrestling britânico sempre conseguiu criar, fosse nas terras de sua majestade, fosse no resto da Europa e até nos EUA.
Esse interesse capitalizava-se na facilidade de arranjar patrocínios e contratos televisivos, pois ao contrário do que aconteceu com o wrestling britânico no início do século em que praticamente desapareceu dos grandes palcos, nos anos 80 e 90, era habitual várias empresas britânicas conseguirem contratos televisivos. Mas ainda se engloba nesse interesse os olhos que as grandes empresas americanas punham sempre nos seus lutadores, nunca deixando de estar atentos aos melhores e maiores nomes praticantes no Reino Unido.
Mas como já disse, o wrestling britânico decaiu muito no início do século XXI. Poucos foram os lutadores que se destacaram durante a sua primeira década e cada vez mais aquele polo centralizador de apaixonados pela modalidade, em público e praticantes se transformou cada vez mais em wrestling independente de curta e pequena escala. É certo que ainda tivemos a geração de Doug Williams, Johnny Storm, entre outros e a geração de Stu Bennet, Nick Aldis, etc., mas se a primeira foi uma geração quase perdida, infelizmente, a segunda constituiu um grupo de lutadores que fez nome nos EUA e que em nada, ou quase nada contribuiu para o crescimento do wrestling britânico.
Foi somente já na segunda década deste século, que terminou há um mês, que se deu um novo boom do wrestling no Reino Unido e não só neste país. Em toda a Europa, começaram a crescer alguns centros de wrestling com interesse, uns mais importantes e interessante que outros mas dignos de destaque. Já referenciei a wXw na Alemanha, que se tem tornado cada vez mais no destino de jovens aspirantes à modalidade na Europa continental, como foi o caso da nossa querida Killer Kelly, englobando não apenas a Alemanha, mas várias regiões que historicamente lhe estão associadas, como a Áustria e a parte da Rússia ocidental. E mais, França conseguiu também fornecer alguns bons nomes para o wrestling europeu actual como Senza Volto e Amale e até Espanha nos trouxe não só A-Kid, que hoje podemos ver no NXT UK, como também Carlos Romo, nome constante da RevPro no Reino Unido.
Neste sentido, porque o wrestling britânico, saudável e interessante é preciso? Porque será sempre o centro polarizador de wrestling na Europa e sem ele, esta modalidade não crescerá na Europa. Novos aspirantes desanimarão com as suas possibilidade de fazer vida nesta modalidade. Se no Reino Unido não tiverem uma proposta de vida animadora e ambiciosa, não serão um nome de referência no seu país e, em cada região europeia, serão cada vez menos as promotoras que se aventurarão neste mundo.
Mas mais interessante que esse dado para mim adquirido foi a forma como o wrestling no Reino Unido conseguiu crescer na última década e a palavra que descreve melhor esse crescimento é “diversidade”. Primeiro, diversidade ao nível da junção do clássico com o moderno. No Reino Unido sempre se teve uma cultura “tecnicizada” de compreender o wrestling. Foi esse o seu ponto forte no grande período dos anos 80 e 90 e o que trazia de novo face às histórias elaboradas e combates rápidos e brutais dos EUA, nomeadamente na WCW e WWE, mas wrestling técnico só por si é um estilo de nicho.
Num universo de 150 pessoas, 25 verão wrestling pela técnica, pelo chain wrestling, pelos reversals e submissões. Eu sou uma dessas 25 pessoas, mas para uma promotora que deseja crescer não se pode habilitar a ter somente 25 pessoas nos seus shows e tem de tentar as 150. E fá-lo apresentando histórias que coloquem interesse nos combates, que lhes dêem uma razão para acontecer. E fá-lo ainda apresentando outro estilo de wrestling diferente de combate para combate e mediante as histórias apresentadas.
Foi isto que o wrestling britânico no início da época fez. A ICW (com um estilo mais violento e brutal), a RevPro (com um estilo mais técnico), a PROGRESS WRESTLING (com um estilo muito próprio e englobando elementos dos dois), entre outras perceberam que para crescer não podiam apresentar um estilo e um só estilo. Mas nem todas começaram a fazer combates com estilos diferentes da mesma maneira. Há promotoras que privilegiam um e outras que privilegiam outro, mas não se centraram somente num e apelaram a massas e não a nichos.
Outra forma de juntar o clássico com o moderno foi a “reconciliação” com o passado. Johnny Storm, Doug Williams e os do seu tempo passaram a fazer parte destes shows inovadores e trouxeram o passado em que foram injustiçados pelas circunstâncias para um presente que os aceita e que, mais do que isso, os admira pelo seu trabalho e estilo digno de aprendizagem pelos melhores.
Em segundo lugar, diversidade nos próprios lutadores. O lutador clássico britânico é o óptimo wrestler no ringue, mas falha em personagem e carisma. Com isto dito, não consigo hoje encontrar um lutador britânico que hoje, não deixando de ser um óptimo wrestler, não tenha uma gimmick interessante. Ou se não a tem, acaba por ter uma personalidade da qual é fácil gostar ou pelo menos de ter algum interesse. Zack Sabre Jr. é o exemplo mais claro e paradigmático, mas também outros como Pete Dunn, Tyler Bate, Marty Scurll, entre muitos outros exemplos podem ser dados.
Por outro lado, o estilo apresentado por muitos divergiu fortemente do tradicionalismo característico em tudo o que acontece no Reino Unido. Uns apresentaram um estilo bem mais agressivo e forte, baseado no wrestling japonês, caso do Johnny Moss, Trent Seven ou Joe Coffey, assim como outros preferiram mais o estilo violento e brutal que nasceu na ECW. A esta altura toda a gente conhece o trabalho de Jimmy Havoc, ao qual se juntaram nomes como Mikey Whiplash e até Paul Robinson. Por fim, nasceram bastantes high-flyers no wrestling britânico, cujo nome mais conhecido é Will Ospreay, mas também outros como El Phantasmo e até mais recentemente Michael Oku.
Note-se que em toda esta análise não me estou a referir à nacionalidade de cada um dos nomes que referenciei, pois isso para mim é indiferente. Cada pessoa vindo da Austrália, França, Espanha, Alemanha, Áustria, Rússia, Japão ou Portugal e, participando no wrestling britâncio, faz parte dele e merece, como os nacionais do Reino Unido ser considerado parte dele.
Por fim, estas promotoras que contribuíram para um ressurgimento em força do wrestling no Reino Unido souberam fazer bom uso dos meios e instrumentos modernos. Numa época da história da humanidade em que a televisão é cada vez mais um meio secundarizado face às redes sociais e internet, muitas destas brands criaram a sua network ou fizeram parceiras com várias networks de wrestling. Foi sem dúvida muito importante na divulgação do seu conteúdo e principais estrelas. Note-se que, por exemplo, quando uma empresa a crescer na altura como era a PROGRESS fazia shows em parceira com a EVOLVE que eram transmitidos na WWN Network, deu a conhecer vários lutadores que vieram a fazer parte do wrestling mais popular actualmente. WALTER, Travis Banks, Pete Dunn, entre outros, apareceram com grande popularidade em shows do género e foram despertando interesses.
Mais do que isso, souberam quase sempre escolher o lugar apropriado para os shows e sem pressa no crescimento do seu público. Tanto a ICW, como a PROGRESS e a RevPro têm a sua “casa” ou “casas” às quais os fãs conhecem e estão habituados e foram depois fazendo shows ao longo do território de acordo com a forma como queriam crescer. Foi mais visível na PROGRESS, dado que a ICW e a RevPro nunca atingiram o estatuto da primeira. Esta conseguiu ir crescendo até chegar à Brixton Academy, depois para Alexandra Pallace e conseguiu, inclusivamente chegar a Wembley.
Se no início da década, o wrestling britâncio tinha tido uns maus primeiros anos de século XXI, a verdade é que na viragem de ano de 2016 para 2017 era visto como uma das regiões mais atractivas e interesses do planeta em termos de wrestling, mas tudo mudou e cada vez mais tem mudado desde 2017, quando a WWE realizou o primeiro WWE United Kingdom tournment, ou melhor, quando se apercebeu que o crescimento da modalidade do Reino Unido podia atingir níveis como o Japonês e o Mexicano e, percebendo que se não interviesse logo, seria impossível mais tarde evitar que a WWE parasse de crescer em terras de sua majestade, como já é no Japão e no México.
Para travar logo esta possível dificuldade futura, criou um título do Reino Unido e contratou, total ou parcialmente, quase todos os grandes nomes da cena britânica, atingindo o ponto máximo deste travão em finais de 2018 quando criou uma brand sua no Reino Unido. O NXT UK veio para fazer competência às várias promotoras que já existiam no Reino Unido à altura, travando não só o crescimento da PROGRESS e ICW, como impedindo o surgimento de brands menores que poderiam aparecer com estilos renovados e interessantes.
Mas a situação foi diferente consoante as duas maiores companhias do Reino Unido. A RevPro foi menos afectada pela criação do NXT UK porque a sua parceira com a NJPW o impediu. E em boa hora o fez. Apesar de ser claramente afectada pela saída de muitos e bons lutadores seus e que tinham sido importantes na sua história e destaque recentes, conseguiu colmatar as suas falhas com alguns nomes da NJPW e ROH, mas não conseguiu impedir a inevitável perda parcial de identidade, que só agora está a conseguir recuperar.
Quanto à PROGRESS, tratava-se da minha brand preferida no Reino Unido nos primeiros anos desta década, mas algumas decisões de gerência acabaram por travar aquilo que a PROGRESS estava a conseguir. Sim, é verdade que continua com total controlo dos títulos e booking, mas os lutadores que tem usado são os do NXT UK. Isso coloca entraves na credibilidade e qualidade dos combates apresentados. Na credibilidade porque ninguém quer ver o Eddie Dennis heel na WWE Network e depois face nos shows das PROGRESS, assim como toda a gente achou estranho quando Tyler Bate venceu o primeiro WWE United Kingdom tournment derrotando Pete Dunn na final. À altura, Tyler fazia parte do mesma facção que tinha Pete Dunn como líder e que dominava a PROGRESS na altura. Por que razão estaria ele a vencer um título da WWE por um lado, e a ser derrotado em shows normais na PROGRESS por alguém que Pete Dunn iria enfrentar a seguir?
Por outro lado, o wrestling que é apresentado no NXT UK é, na esmagadora maioria, apresentado na maior parte das companhias britânicas, especialmente o da PROGRESS, mas traz vantagens muito muito maiores que assistir à PROGRESS. Desde logo, tem aquele booking inteligente do NXT e que o Triple H já nos habituou, sendo mais fácil para todos nós assistirmos a uma hora de wrestling por semana e depois dar tudo nos grandes shows. Ora, isso não acontece com a PROGRESS, que realiza com grande frequência eventos bastante longos, atingindo uma duração além das 3 horas. Para um fã de wrestling que goste de acompanhar o máximo possível e que tenha tempo limitado, será normal que assista com regularidade ao NXT UK e deixe a PROGRESS para ver apenas o seu essencial quando tiver tempo. Infelizmente, foi o que ocorreu comigo.
Costuma-se dizer que o original é melhor que a cópia. Contudo, tal não será verdadeiro nesta situação. Não será verdadeiro quando a cópia tem uma dimensão maior e um mercado inclusivo infindável comparando com o original. Neste caso não foi o irmão mais novo que copiou o irmão mais velho, mas o irmão mais velho que roubou do irmão mais novo uma ideia que gostou e que as pessoas nunca pensariam que teria sido o irmão mais novo a criar. O irmão mais velho é a WWE e o mais novo o wrestling britânico.
Como capitalista e defensor do sistema de mercado concorrencial nada tenho contra as grandes empresas fazerem fortuna à custa do seu produto ou bem fornecido da melhor forma que acharem e eliminando o máximo de concorrência possível. Contudo, deve haver um mínimo aceitável e esse mínimo é a lei da concorrência. Não conheço qualquer legislação americana sobre a concorrência no mercado, nem sequer sobre a britânica mas conheço de Portugal e da União Europeia e sei que a WWE, ocupando uma posição bem dominante no mercado, tem obrigações e deveres a cumprir, sob pena de matar qualquer possibilidade de concorrência.
A WWE é uma empresa com posição dominante no mercado e não um monopólio, isto é, não é a única empresa que presta determinando bem ou serviço, mas sim a que detém a maior parte da quota do mercado. E note-se que falo da WWE que presta serviços no Reino Unido e não enquanto empresa americana. Uma sociedade nestas condições não pode ter certas práticas pois a sua licitude levariam a eliminar total ou parcialmente a concorrência, como é o caso de se fundir com outras empresas do mesmo mercado, praticar preços ultra-baixos e, principalmente, não comprar ou praticar parceiras com as empresas suas concorrentes, entre outras.
Então, quando a WWE arrasa com grande parte dos trabalhadores de várias concorrentes, forma parcerias ao ponto dos seus lutadores serem os mesmos que os das parceiras e limitados pelo contrato ser com a WWE, está, sem dúvida, a assumir uma posição dominante no mercado.
Mas isto seria facilmente impugnável. Primeiro, porque o wrestling, mesmo sendo entretenimento, cultura ou desporto e, por isso, sujeito às mesmas regras de concorrência que qualquer outro semelhante, não se lhe é conhecido qualquer caso relativo a esta questão, nem há quaisquer preocupações ligadas a que isso venha a acontecer no futuro. E mal! Ser wrestler deve ser considerado como se exercendo qualquer outra profissão, defendida pelo direito ao trabalho e à valorização da concretização pessoal através da criação do próprio emprego. E a WWE está a impedir que tal aconteça no caso do wrestling britânico.
Aliás, Vince McMahon havia feito algo semelhante, mas ainda bem pior nos anos 70 quando adquiriu várias promotoras menores, eliminando grande parte da potencial concorrência e levando à queda da NWA, algo que já falei em artigos recentes.
Por isso, quando o Triple H diz que conseguiu que promotoras mais pequenas deixassem de existir e que lutadores que lá lutavam deixariam, por isso, de correr o risco de não serem pagos pelo seu trabalho, eu não discordo, até porque serei sempre o primeiro a defender que os lutadores devem lutar e ser pagos obrigatoriamente por isso. Mas assim como as empresas que não pagam salários devem fechar, também as promotoras que não paguem aos seus lutadores não podem ser protegidas.
Mas o que é verdade é que não foram só estas promotoras menores que desapareceram. O travão que o Triple H colocou no crescimento das empresas maiores como a ICW e a PROGRESS foi demasiado evidente e com prejuízos sérios na concorrência do wrestling britânico.
Não há nenhuma entidade reguladora que possa concretizar isto que estou a aqui a dizer, nem prevejo que tal venha a acontecer. mas o que me parece certo e até evidente é que a WWE tem uma posição de mercado dominante e que está a abusar dela.
Hoje ficamos por aqui.
Até para a semana e obrigado pela leitura.
8 Comentários
Parabéns pelo artigo. Também sigo o trabalho do Senza Volto, e para mim mais 2/3 anos acho que ele conseguirá chegar a um patamar maior. Quanto ao artigo concordo com o que escreveste. Ainda me lembro de ver episódios da ICW e da NGW na Fight Network, recordo-me de ver na NGW o Zack Gibson e o El Ligero.
Na FN também dava wrestling mexicano.
Obrigado! Eu só conheci o Senza Volto pelos eventos da RevPro mas parece-me ser alguém que pode explodir nos próximos anos, sem dúvida.
Ótimo artigo, na minha opinião o melhor wrestler Britânico da atualidade é o WULL OSPREAY
Will Ospreay* , é uma pena esse site não poder ter a opção de apagar o comentário ou editar.
Obrigado. Na minha opinião também, não foi por acaso que para mim ele foi o wrestler do ano em 2019.
A NXT UK é um culto.
Obrigado pelo comentário. Eu também gosto muito do NXT UK, mas gostar não significa passar um cheque em branco para matar a concorrência.