No outro dia, deitei-me como habitualmente. E por habitualmente quero dizer que me deitei sem saber se no dia seguinte ia acordar. Pode acontecer até ao mais saudável: ir dormir, ter planos para daí a umas horas e nunca cumpri-los porque o coração deixou de bater.

É curioso. Podemos viver sem um rim, sem um braço, sem um dedo e sem um pé. Mas basta este orgãozinho a que deram o nome de coração deixar de funcionar e tudo se transforma em nada.

Detesto quando dizem que a pessoa “x” não tem coração. Porque todos temos um coração! O que falta à esmagadora maioria dos seres humanos é… humanidade. Bondade. Solidariedade. Saber colocar-se no lugar do outro, perceber que a nossa falta de problemas não é universal e tentar mudar o mundo, tornando-o melhor…

Que coisas ridículas estou eu para aqui a escrever. Afinal, a que propósito vem esta conversa da treta sobre mundos melhores e mais humanos e sobre corações pararem de funcionar?

É que no outro dia, um dia igual a tantos outros, tive um sonho. Sonhei, imagine-se, que estava no Paraíso a fazer uma entrevista. Eu, no Paraíso! Um tipo que nunca acreditou em Paraísos e Infernos, a sonhar com uma coisa destas! Mas parece que o Sonho é mesmo assim: uma realidade em que qualquer coisa pode acontecer e somos substituídos por outros “eus”.

Quanto à entrevista… bem, foi estranha. Primeiro, porque foi sonhada; segundo, porque a pessoa que entrevistei nunca esteve comigo pessoalmente. Já a vi muitas vezes através da televisão e do computador, mas ela nunca me viu mais magro.

Não me lembro de como começou o sonho. Só sei que dei por mim a abrir um bloco de notas e a preparar a caneta para escrever o que o entrevistado ia dizer. Nas próximas linhas, fica a transcrição dessa entrevista sonhada:

Eu- Estás aqui há dez anos… Posso tratar-te por tu, certo?

Ele- O sonho é teu… Podes tratar-me como quiseres.

Eu- Obrigado. Estás aqui há dez anos. Uma década… Não tens saudades da vida que levavas lá em baixo?

Ele- Sim, muitas. Sempre pensei que vir cá para cima seria a obtenção da Paz tão desejada, mas não ter a minha mulher e as minhas filhas aqui comigo torna tudo muito mais complicado.

Eu- Acredito… Mas por outro lado, tens aqui um dos teus melhores amigos, em quem o mundo desabou quando tu para aqui vieste e que só descansou quando te veio fazer companhia. Essa companhia já é muito mais do que a grande maioria dos que vivem lá em baixo tem.

Ele- Eu sei, mas é triste quando deixamos aqueles que nos amam lá em baixo a chorar por nós e cometemos o ato egoísta de os largar para virmos para um lugar, supostamente, melhor.

Eu- Há muita gente que gostaria de aqui estar mas não tem coragem de acabar com tudo com as suas próprias mãos…

Ele- Não digas isso. No fundo, eles não são cobardes. Mal eles sabem que aquilo a que chamam Paraíso não é o mar de rosas que pintam. Eu, por exemplo, sinto-me sozinho, mesmo com o meu melhor amigo aqui ao meu lado. O Paraíso, a existir, tem que ser construído lá em baixo. Por aqueles que têm um coração a bater, cinco continentes e uma imensidão de mar ao seu dispor. Aqui, por outro lado, é tudo tão igual e vazio. Não há mar, não há árvores, não há sol, não há chuva, não há calor, não há frio…

Eu- Não há dinheiro…

Ele- Ah, o dinheiro… Que importa isso? Eu em termos financeiros vivia bem lá em baixo. Do que é que isso me serviu? Vim para aqui novo, com muito por viver e sem um tostão furado. Do que é que me serviu ganhar muito dinheiro se no fim de contas tive o mesmo fim que todos os outros e, ainda por cima, fui assombrado por demónios enquanto estive lá em baixo?

Eu- Fala-me desses demónios… É verdade que os conseguiste ultrapassar nos teus últimos anos de vida?

Ele- Sim, é. Eu sei que quando vim para aqui se levantaram dúvidas sobre as causas da minha morte. Houve quem dissesse que tive uma recaída, mas é mentira. Estava mesmo curado. Simplesmente os resíduos dos meus vícios ainda estavam presentes no meu corpo e isso fez com que o meu coração parasse de bater. É caso para dizer que os meus demónios me venceram quando eu não o esperava. Quando julguei que os tinha vencido e já não se encontravam dentro de mim, eles voltaram para me dar uma estocada final.

Eu- Falando agora da última empresa onde trabalhaste, como é que vês os tempos atuais?

Ele- Há muita gente que sabe o que fazer, simplesmente não lhes dão a oportunidade de mostrar o que valem. Uma das coisas que mais confusão me faz é a falta de camaradagem, algo que no meu tempo havia, e muita. Hoje em dia, já não viajam juntos pelo mundo, noutras empresas, chegando depois ao topo; muito deles começam logo na empresa principal, não formando laços de verdadeira amizade com outros colegas por aquele mundo fora. Já para não falar de que no meu tempo não se passava o tempo nas redes sociais em vez de estarmos a confraternizar como deve ser, nas inúmeras viagens que fazíamos durante o ano.

Eu- Achas que fazes falta àquela indústria?

Ele- Não sei. Só quem vive lá em baixo é que pode responder a isso. Gosto de pensar que sim, mas também não acho que as coisas pioraram devido à minha morte. Os fãs e as suas exigências mudaram, os talentos mudaram…

Eu- Sobre o teu antigo patrão… Uma personalidade, no mínimo, peculiar. Concordas?

Ele- É excêntrico. E, infelizmente, não é muito culto. Chega a ter pensamentos perversos, sim, e outros até preconceituosos, mas sempre me pareceu algo inconsciente, sem qualquer maldade.

Eu- É verdade que ele é racista?

Ele- Não. Isso é uma mentira pegada. Sempre me tratou muito bem, assim como à minha família e as de todos os estrangeiros que trabalharam para ele. Uma das coisas que mais me irritam é estar aqui em cima, impotente, sem poder defendê-lo dessas acusações. Por isso é que eu digo: se querem que exista um verdadeiro Paraíso, façam as coisas enquanto estão lá em baixo. Mexam-se. Aqui em cima não podemos fazer nada. O estar vivo, ter um coração a funcionar, ter uma voz… Essa é a maior arma que podemos ter, acreditem em mim.

O despertador toca. Raios! Logo agora que lhe ia perguntar como foi ganhar o Título da WWE ao fim de tanto tempo a escalar a montanha; se achava que o facto de um dos seus melhores amigos ter ganho um Royal Rumble e um Título Mundial na WrestleMania se deveu apenas à sua morte; logo agora que lhe ia perguntar se é verdade que John Cena nunca mais perdeu por submissão porque lhe prometeu que nunca ia desistir de nada na vida, a porcaria do despertador toca.

Também vou ficar sem saber porque é que na parte final da entrevista dele, o seu discurso se tornou num “vocês façam isto, vocês façam aquilo”. Seria o meu subconsciente a misturar-se com as palavras dele?

O que eu sei é que ele foi um dos melhores wrestlers de sempre. Partiu demasiado cedo (porque cedo partimos todos) e deixou muita gente desolada. Era adorável como babyface, detestável como heel doentio, cómico como heel “cool“. Um dos lutadores mais completos que já entrou num ringue de Wrestling.

Dez anos… Parece que foi ontem.

Talvez a esta hora esteja a roubar, a mentir e/ou a trair alguém. Ou talvez esteja com uma “mamacita”. Ou simplesmente a fazer alguém rir com o seu humor e o seu sorriso inesquecível.

Dez anos desde que morreu, mas o seu legado perdurará eternamente. Não apenas os títulos conquistados, mas a forma como ajudava os talentos mais novos, simplesmente porque era tão fã disto como nós e queria que as coisas corressem sempre pelo melhor, fazem dele um lutador eterno.

Seria tão adorado caso não tivesse falecido tão novo? Nunca saberemos… Já se sabe que este mundo hipócrita só dá valor ao Homem quando ele morre. Quando cá andamos, somos apenas uns drogados a quem todos apontam o dedo sem esticar a mão. Depois de mortos, somos quase sempre excelentes pessoas.

Seja como for, a forma como os seus colegas choraram a sua morte, como fez com que Vince McMahon se emocionasse em televisão como nunca antes tinha acontecido e como o seu falecimento contribuiu, diz-se, para que Chris Benoit chegasse ao ponto a que chegou são sinais de que se tratava de uma grande pessoa. Já para não falar do facto de ter começado a usar o “Frogsplash” porque este era o finisher de um antigo parceiro seu que faleceu, também ele, demasiado cedo.

Também por isso, mas sobretudo pela sua carreira como wrestler: obrigado, Eddie.

Cutting Edge #29 – Uma entrevista no Paraíso

73 Comentários

  1. Daniel, arrepiei de ler cara
    Melhor artigo que li desde que comecei a frequentar o site
    Meu sonho é ter sonhos assim

    • Muito obrigado pelos elogios.

      Quanto ao sonho, foi ficcional. Todos podemos inventar sonhos destes.

  2. BRUTAL…o grande amigo dele esta ao lado dele! Excelente detalhe!

  3. Brilhante

  4. Excelente Daniel porra, eu parece que estava a adivinhar sobre quem era.

    Nos últimos dias sempre a publicar cenas no chat do Eddie hum… seguindo, otimo artigo, o Eddie estará sempre nos corações das pessoas, mesmo estando ao lado do seu melhor amigo, ainda faz imensa falta cá em baixo

    THANK YOU EDDIE

  5. Dolph Ziggler9 anos

    Muito bom.

  6. Mas que artigo! Awesome.
    #thankyoueddie

  7. muito foda cara

  8. Tibraco9 anos

    Já sabes que não sou grande fã deste género de artigo mas acho que estiveste muito bem e mostraste predicados que, até agora, não tinhas mostrado.

    Parabéns e continuação do excelente trabalho.

    • Muito obrigado.

      Por acaso, não tinha essa ideia. Porque é que não és fã?

      • Tibraco9 anos

        Ás vezes o Daniel e o Akuyj (acho que era assim o nome dele) escreviam uns textos “diferentes” e eu comentava que não era grande fã, apesar de lhes reconhecer o mérito de escreverem bem. Pessoalmente gosto mais do estilo de artigo das primeiras 28 edições. Artigos onde dás a tua opinião, sem grandes floreados, sobre um determinado tema. Mas hey, dentro do género, acho que estiveste muito bem!

  9. Excelente! #ThankYouEddie #VivaLaRaza

  10. Que sonho do caneco digo-te.

    Espetacular pedaço de texto.

    Os meus parabéns pela escrita.

  11. 434 Days9 anos

    Artigo fenomenal Daniel. Talvez o teu melhor até agora.

    Tenho uma grande pena de não ter acompanhado o Eddie nos seus tempos áureos, mas pelas imagens que já vi dele e todo o carinho que tem dos fãs 10 anos depois da sua morte entendo todo o seu legado no wrestling. Thank You Eddie.

    • Obrigado pelos elogios.

      Eu ainda acompanhei dois anos dele. Mas só mais tarde, quando tive acesso à Internet e pude ver algum Wrestling mais antigo, é que me apercebi do talento que ele tinha. Nasceu mesmo para isto.

  12. WholeRollinsShow9 anos

    Uma vénia a este brilhante texto!
    Thank you Eddie!

  13. Credo, que artigo do caraças. Parabéns bro.

  14. Kira9 anos

    Um dos gajos que me marcou mais no mundo do wrestling..
    Exelente artigo, tambem gostava de ter sonhos destes 😉

  15. Os meus parabéns pelo magnífico artigo. Aliás, confesso que já estava a estranhar tanta demora no lançamento de um artigo que elevasse a fasquia, dada a qualidade que tens no que toca à escrita (não foi por acaso que eu classifiquei os outros artigos como ‘bons’, porque eu sabia que podias fazer muito melhor e ainda não tinhas mostrado nada de diferente em relação àquilo que já era feito por outros cronistas).

    Mais uma vez, parabéns. E mantém o nível.

    • Muito obrigado.

      Pois, eu tenho noção disso. Mas é preciso ter inspiração para sair dessa “zona de conforto” e eu se calhar não a tenho todas as semanas. Aliás, não é por acaso que preparei este artigo durante algum tempo, visto que queria que saísse daqui algo com outro nível.

      Além disso, prefiro fazer artigos de opinião, até porque sempre fui muito opinadeiro xD

  16. Marques9 anos

    Excelente.

  17. BRRM9 anos

    Este é muito provavelmente o único artigo que já li neste site que me deixou completamente sem palavras, tamanha é a qualidade. Muitos parabéns!

    Thank you Eddie!

  18. Fantástico! Dos melhores artigos de sempre do site. #ThankYouEddie
    #ThankYouDaniel

  19. Uau,apenas uau grande artigo,Daniel,é preciso ter cabeça para fazer este artigo estás de parabéns!

  20. O melhor artigo sem duvida.
    Os meus sinceros parabéns Daniel.
    Eddie e Benoit sempre presentes nos nossos corações.

  21. Silveira99 anos

    Excelente!

  22. Dos melhores artigos que li aqui sem qualquer dúvida.
    Eddie foi desde cedo a minha superstar favorita, acho que era difícil não gostar dele.
    Infelizmente partiu demasiado cedo, mas deus queira que esteja num lugar melhor.

    Se for possível responderes, ” John Cena nunca mais perdeu por submissão porque lhe prometeu que nunca ia desistir de nada na vida, a porcaria do despertador toca. ”

    Isso, foi por causa de um segmento que aconteceu em 2005 no No Way out ?

    Cumprimentos e parabéns

    • Muito obrigado.

      Sim. Dizem que o Cena nunca mais desistiu devido a esse segmento e a outras conversas que eles tiveram sem ser em televisão. O Eddie ajudou muito o Cena e este prometeu-lhe nunca desistir. Há quem diga que ele nunca mais deu tap out devido a essa promessa.

  23. Nem sei o que dizer,artigo brutal,Daniel.
    Continua assim,talvez foi o melhor artigo que já fizeste e um dos melhores que já vi neste site,Parabéns.

  24. Excelente! Dos melhores artigos que já houve no site!

    #ThankYouEddie #VivaLaRaza

  25. Bom artigo, até me arrepiei, parabéns Daniel. Só mais uma coisa: Viva La Raza!

  26. zemangueira9 anos

    Excelente artigo, arrepiei-me de ler algumas partes porque partilho do teu sentimento, foi dos wrestlers que mais me marcou, a morte dele continua a ser dos piores momentos a que já assisti em todos estes anos de wrestling, e custa a crer que já lá vão 10 anos…
    Faz mesmo muita falta. #ILieICheatISteal #VivaLaRaza

  27. Que artigo excelente! Inesquecível, não é fácil arranjar inspiração para o que fizeste, parabéns Daniel. Quanto ao sonho, muito interessante, apesar de ter acontecido mesmo, mais ainda assim é preferível que te tenhas libertado e escrito o que te ia na alma do que se tivesses mesmo relato um sonho, até porque é praticamente impossível lembrarmo-nos de tantas falas de um sonho.

    • *apesar de não ter
      *um sonho com o Eddie

    • Muito obrigado.

      Obviamente que não podia ser um sonho a sério, até porque os sonhos têm sempre coisas que não fazem sentido e este artigo é demasiado coerente.

  28. trouble...trouble...trouble9 anos

    até me emocionei, não vi nenhum combate do eddie, mas quando comecei a ver wrestling estava o rey naquela sua caminha para a wrestlemania e desde cedo percebi aquilo que ele significava para todos, tal como o seu amigo benoit, o que me chateia bastante que a wwe faza de conta que ele nunca existisse, não há certezas absolutas de que tenha sido ele a fazer aquilo, mesmo que tenha, que é muito provável, é porque não tava nas melhores condições psicológicas e se não o estava era por causa do seu emprego na wwe

    • A WWE não finge que o Benoit não existe. Se fores ao site deles, está lá ele na lista de campeões e nos resultados, por exemplo, da WrestleMania XX. Só não metem fotografias, vídeos nem promovem o nome dele, o que se compreende.

  29. Rodrigo9 anos

    Texto bom e criativo. Parabéns!

  30. Pato roco9 anos

    Li umas 5 vezes já, e estava a procura de alguma maneira de o elogiar, mas pelo o que vejo, tudo que eu disser, já foi dito acima Haha

    Algo bastante criativo e que nos desperta mais e mais o interesse em prosseguir a leitura a cada fala.

    Awesome, Daniel!!

  31. you cant see me9 anos

    Excelente artigo. Concordo contigo em tudo.

  32. Fantástico.

  33. Anónimo9 anos

    Parabéns Daniel.

    Foi o teu melhor artigo! Gostei de ler do início ao fim, só achei desnecessário o “mistério” em relação ao Eddie, logo no início da “entrevista” já dava pra notar.

  34. WWEdge9 anos

    Parabéns Daniel pelo artigo estupendo e muito criativo. Uma excelente homenagem ao grandioso Eddie Guerrero que infelizmente nos deixou cedo.

  35. Bem não sei o que dizer…
    Faço de todas as palavras que aqui estão escritas em cima,as minha, pois estes meus amigos já disseram tudo… É preciso ter muito jeito para fazer este tipo de artigos,pois para além de criar um sonho,faze-lo com uma linguagem mt boa, e complicado…
    Parabéns Daniel….
    #VivaLaRaza