A verdade é uma arma muito poderosa na arte de contar histórias. Poderosa, mas também perigosa. É uma arma que a WWE gosta muito de usar, no entanto raramente tem a destreza necessária para o fazer. É preciso cuidado quando usamos esta ferramenta num universo que é encenado e ensaiado por natureza, porque a qualquer momento pode o feitiço virar-se contra o feiticeiro. É o mesmo que acender uma lareira numa casa de madeira – senão controlarmos bem o fogo, ficamos sem casa.

Recentemente, a WWE tem utilizado esta ferramenta com frequência em, pelo menos, três histórias diferentes. Esta semana, vimos Ronda Rousey a afirmar que Wrestling é “falso”, Vince McMahon a dizer que a única hipótese que Kofi Kingston tem de entrar no Hall of Fame é como membro dos New Day e AJ Styles e Randy Orton a falarem abertamente das suas carreiras.

Opinião Feminina #349 - Mismanaging Truth

Neste último caso, a verdade até serviu para um momento de diálogo e desafio mútuo extremamente interessante. Quem diria que alguma vez ver uma discussão verbal entre AJ Styles e Randy Orton iria ser, não só interessante, mas uma excelente forma de promover um combate dos dois? Irritado por ver AJ Styles receber mérito pelo sucesso do SmackDown, Randy Orton fez um resumo da sua carreira, não fugindo a referências à Ring of Honor ou à TNA, chegando mesmo a mencionar Dixie Carter. AJ Styles, por sua vez, chamou – e bem – Orton à atenção, pois se olhar em redor com cuidado, verá que agora está rodeado dos lutadores que dominavam o circuito independente enquanto este era o menino bonito da companhia. AJ Styles ainda foi mais longe e acusou Orton de ter copiado o RKO do arsenal de DDP.

É refrescante ver dois atletas a desafiarem-se desta maneira. Não através de discursos ensaiados, escritos por uma equipa de guionistas, usando palavras que nenhum deles usaria num contexto normal. Muito pelo contrário, disseram o que sentiam – possivelmente motivados por verdadeira frustração – e falaram abertamente das suas carreiras, sem ser preciso fingir que a TNA não existiu, ou que Randy Orton foi escolhido e protegido cuidadosamente no seu início de carreira, ou que a ROH é apenas imaginação dos fãs… Enfim, foi um segmento empolgante de assistir, porque pareceu genuíno. Não é complicado para mim acreditar que AJ Styles e Randy Orton realmente se atacam daquela maneira.

Para eles e para o benefício desta rivalidade, o uso da verdade foi fundamental para vender fricção e animosidade entre eles. E convenceu! Veremos se a WWE irá conseguir manter o interesse e a qualidade nesta rivalidade até à WrestleMania, todavia é pouco provável que isso aconteça. A WWE não é conhecida por conseguir manter as rivalidades coerentes e interessantes durante longos (ou por vezes, até curtos) períodos de tempo.

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Outro exemplo do uso recente da verdade em televisão por parte da WWE envolve a história de Kofi Kingston e a sua missão em lutar pelo título principal do SmackDown na WrestleMania. Aqui é que já começamos a detetar alguns problemas e potenciais falhas. Como disse, a verdade é uma arma perigosa que rapidamente pode funcionar contra as intenções da WWE.

Na passada edição do SmackDown, os New Day uniram-se e confrontaram Vince McMahon para defender o direito de Kofi Kingston de lutar pelo título principal na WrestleMania. Foi um segmento emotivo e cheio de garra, no qual os três membros brilharam. No entanto, Kingston destacou-se dos demais. Não foi só a emoção com que falou, quando agarrou ao microfone, ou a sinceridade que se sentiu quando falava dos filhos e dos sacrifícios que já fez em prol da carreira que escolheu, ou até a forma como não estava a exigir o combate – como qualquer homem decente e honrado, Kingston apenas queria saber o que era preciso. As suas reações silenciosas à medida que os seus amigos o defendiam também não ficaram nada atrás e apenas melhoraram o segmento. Foi um momento de ouro para os três que muito fez pela causa e pela história envolvida. Se o segmento tivesse ficado por aí, não haveria problema, mas a WWE quis ser ainda mais sincera.

Mas há coisas que não se dizem em televisão, porque os fãs sabem que elas são verdade e isso vai-lhes tirar a motivação ou a vontade de acreditar na ilusão e na história que está a ser contada.

Vince McMahon, no seu típico tom condescendente, disse diretamente a Kofi Kingston que, apesar de todo o seu trabalho e dedicação – que ele reconhecia, a verdade é que, no fim do dia, ele nunca iria entrar no Hall of Fame como lutador individual, mas apenas como parte dos New Day. É outra forma de dizer que, apesar de tudo o que já fez na WWE, desde que se estreou, Kingston não deixou a sua marca como lutador individual.

E isto é verdade. Independentemente de quem for a culpa – seja de Kingston e das suas capacidades ou da WWE e das suas capacidades – a carreira de Kofi Kingston até há um mês atrás resumia-se a uma lista de combates com Dolph Ziggler, vários reinados com títulos individuais que ninguém se lembra, vários reinados com títulos de equipas com muitos parceiros diferentes e os New Day.

E não se pode dizer isto a alguém quando estamos a tentar prepará-lo ou credibilizá-lo o suficiente para enfrentar um dos campeões principais na WrestleMania e, possivelmente, derrotá-lo. Porque os fãs sabem que é verdade! Os fãs sabem! Ao contrário do que a WWE pensa, os fãs não têm memória de peixes de aquário e ainda se lembram do que aconteceu há uns anos ou como Kofi Kingston chegou onde chegou.

É uma pena, porque a WWE tem em mãos uma história tão boa e tão forte. Uma história que vai mexer com a audiência, porque muitos se vão identificar com ela. A história em que um empregado não consegue aquilo que merece, porque está a mercê de um patrão injusto que avança a meta sempre que o empregado pensa que chegou ao fim da corrida. E com Kofi Kingston isto funciona, porque Kofi é alguém que sabemos que genuinamente não tem muitas oportunidades para chegar à meta. Esta dinâmica não funciona com um Roman Reigns ou um Braun Strowman, porque sabemos instintivamente que a meta será adiantada para eles só porque já possuem os atributos que os patrões consideram importantes.

Há quase seis anos, a WWE cometeu o mesmo erro com Daniel Bryan. Os membros da Autoridade olharam Bryan nos olhos e disseram-lhe que ele não era o que procuravam no campeão principal da companhia. E a verdade é que, assim que tiveram oportunidade – com ou sem lesões ao barulho – a WWE voltou a colocar Bryan na posição que sentiam que era adequada para ele – relevante, mas não no topo. Na altura, já acreditava que a abordagem que estavam a escolher iria prejudicar a popularidade de Bryan, o que no fundo, era irrelevante porque levar Bryan ao combate principal da WrestleMania não estava nos planos.

A questão é que, novamente, os fãs não têm memória curta e para além de saberem perfeitamente que o que Vince McMahon disse é verdade, também sabem que a aposta em Kingston não irá durar muito tempo e que é pouco provável que este se torne numa figura permanente da contenda principal pelo título. Portanto, constatá-lo apenas prejudica a história, quebra a ilusão e impede que os fãs se divirtam, para além de arruinar a credibilidade e popularidade de Kingston pelo caminho.

Aliás, Vince é completamente desnecessário para esta história. Daniel Bryan transformou-se num vilão de tal forma fantástico que o segmento teria sido mais emocionante e aterrador se Bryan tivesse dito a Kingston, olhos nos olhos, que ele não era bom o suficiente para o enfrentar – que não passava de um “B+ player”. Isto dito de outro “B+ player”, apenas teria aumentado mais o ódio por Bryan e fomentado mais simpatia e adoração por Kingston. Como de costume, os McMahon só serviram para atrapalhar.

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Porém, penso que nada disso se compara à idiotice de deixar Ronda Rousey promover o ódio dos fãs ao apelidar Wrestling de ser falso. E não, não o digo porque estou ofendida como fã e acho que é sacrilégio dizê-lo. Pessoas dizem disparates todos os dias, infelizmente, e explicar que Wrestling é, na realidade, uma forma de teatro mais física e sem duplos dá demasiado trabalho. Quem quer perceber, percebe. Não estamos a falar de física quântica. A questão é que “falso” se transformou num insulto, numa forma pejorativa de descrever Wrestling, não tanto por pessoas ignorantes, mas por pessoas que não gostam e querem criticar. Relativamente a isso, também não há nada a fazer.

Acredito que Ronda Rousey tenha apreço pelo Wrestling e goste do que está a fazer. Acredito que Ronda Rousey respeite Wrestling e não acredito que o tenha feito em tom pejorativo. Acho que o fez para estimular ainda mais a sua rivalidade com Becky Lynch e se tornar mais odiada por parte dos fãs. No entanto, a pergunta tem que ser feita – a que custo?

Era necessário ter chegado a este ponto? Porque esta é a verdade que a WWE nunca irá conseguir negar. A WWE pode escolher amanhã transformar Kofi Kingston num lutador proeminentemente destacado e garantir que ele tem uma carreira digna de entrar a solo no Hall of Fame, mas nunca vai conseguir transformar o Wrestling em algo “verdadeiro”. Quando Ronda Rousey diz que é capaz de desfazer Becky Lynch e Charlote sozinha, mesmo numa situação de desvantagem numérica, todos sabem que é verdade. A WWE nunca vai conseguir transformar isso numa mentira. Ronda Rousey é uma atleta de alto calibre que, não só ganhou medalhas nos Jogos Olímpicos como judoca, como fez carreira como lutadora de MMA, vencendo várias lutas – a maioria delas em poucos minutos ou menos.

Portanto, sabendo os fãs, a companhia, Rousey, Lynch e Flair e praticamente toda a gente com dois dedos de testa que, numa luta “a sério”, Rousey venceria, porquê constatá-lo? Porquê tornar isso parte da história? Agora, se Rousey vencer, não tem significado nenhum. Que significado tem o título? Se Wrestling é falso, então não tem nenhum. É apenas um adereço. Pior ainda, que significado vai ter se Lynch ou Flair derrotarem Rousey na Wrestlemania? Absolutamente nenhum. Afinal de contas, é falso e toda a gente sabe que Rousey venceria se a luta não fosse na WWE.

Esta estratégia é o equivalente a dar um tiro no próprio pé. Tira todo o peso e emoção à rivalidade que tinham, descredibiliza os envolvidos e o trabalho que têm e nem sequer vai conseguir novos espetadores ou fãs. Foi tudo a troco de nada.

Foi semelhante quando, em 2012, Brock Lesnar voltou e começaram a surgir promessas que Brock Lesnar iria trazer legitimidade de volta à WWE. Trazer legitimidade de volta à WWE implica que a WWE não a tinha em primeiro lugar e o que é que isso faz pelo produto? Nada. Ao constatar o óbvio, a WWE só prejudica as histórias que está a tentar contar e as estrelas que está a tentar promover.

No fim desta brincadeira toda, Rousey irá continuar a ser fã e achar que ajudou imenso a divisão porque, graças ao seu envolvimento, a WWE irá dar oportunidade às senhoras para encerrarem a WrestleMania (se isto de facto se concretizar) e irá seguir com a sua vida, calculo que com aparições ocasionais ao longo dos próximos anos. E a culpa não é dela. Não sei quem tomou a decisão de levar esta história tão longe, mas não foi a ideia mais brilhante que tiveram. A questão é que, um dia, Rousey irá embora e para trás ficarão aquelas que continuarão a lutar todos os dias por melhores oportunidades, por melhores carreiras e por melhores histórias numa indústria que, de falso, tem muito pouco.

Peço desculpa por ter falhado a semana passada com uma edição. Obrigada a todos pela atenção e até daqui a duas semanas.

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4 Comentários

  1. Não podia estar mais de acordo.
    A minha questão nestes casos de falta de lógica que a wwe tem tido ciclicamente sempre foi a seguinte: se nós, que estamos de fora conseguimos ver isso, como é que a companhia não consegue?

  2. Acho um enorme exagero a reação sobre a Ronda dizer que wrestling é falso, pelo simples motivo que ela só falou isso no twitter e youtube, nenhum momento mencionou isso na televisão, que é o único lugar que as storylines interessam.
    Acho uma mania irritante dos fãs de wrestling querer que os wrestlers mantenham a kayfabe 24 horas por dia, nenhuma outra forma de entretenimento fazem isso. Nenhum ator de filmes, series ou novela matem o personagem nas redes sociais, nenhum deles para de tirar foto junto com amigos somente porque interpretam inimigos em um show. Os wrestlers são artistas como qualquer ator/atriz, é uma atitude estúpida querer que eles sejam aquilo que são na TV durante sua vida no dia-a-dia.

    • Anônimo5 anos

      concordo com você Wesley, acho exagero toda esta reclamação das pessoas.quando alguém diz que wrestling é falso, por acaso alguém assisti um filme, uma novela, uma série, ou uma peça de teatro, fingindo que aquilo é verdadeiro? claro que não! e nem por isso deixa de gostar.

    • Mas isto só serve para que os deboches das pessoas aumentam com nós fãs de Wrestling!